segunda-feira, 28 de abril de 2014

Uma santa do povo

Este texto bonito e ao mesmo tempo emocionante foi escrito pela amiga Helenice Trindade de Oliveira e serve como uma homenagem merecida, a quem um dia foi vitima da prepotência. Maria Izabel Hornos, a "Guapa" é uma das santas canonizadas pelo povo, em São Gabriel.

"A  Guapa e Eliane

Do lobisomem ao pavor de ser enterrada viva. Dos mortos vivos e dos vivos perversos. Passei parte da minha infância espreitando estas lendas, e morando na casa onde foi assassinada em 1924 a "Guapa". Prostituta uruguaia famosa pela generosidade, beleza e prendas sexuais que encantavam o latifúndio rural da cidade. O mesmo que a assassinou.

Povoei minhas noites naquela casa, com pensamentos que reproduziam a cena do crime. Confesso que sem temor algum do fantasma. Caso tivesse ela vontade de papear comigo nas noites longas e tediosas, o papo rolaria solto. Uma quadra abaixo desta casa, fundos da Santa Casa, existia a nossa “Faixa de Gaza”, amorosa e sexual. A “rua do Chapéu". As crianças filhas das prostitutas ou gerentes dos cabarés, algumas eram sobreviventes do analfabetismo.

Minhas colegas na escola pública. Meu limite territorial acabava na esquina da Santa Casa. Um dia avancei “perigosamente” em direção a casa de "Elaine", magrinha, cabelos lisos. Espevitada. A filha da puta da casa da esquina. Uma mãe. Uma casa de poucos móveis. Paredes escuras. Uma “bilheteria” na sala. Meu olhar e meu entendimento nunca foram suficientes para entender porque Elaine não permaneceu na minha vida, se tinha mãe e casa como eu.

Da mesma forma que nunca entendi porque a cidade rezava nas madrugadas, em procissão até o túmulo da "Guapa", que naquela época já tinha sua clientela para milagres assegurada. Rezavam para a puta oficial da cidade, clandestinos, nos becos, na escuridão e depois corriam para o seu túmulo em agradecimento. Um deposito de batons, sandálias, flores de plástico e correntinhas.

Então tá. Barganha celestial como tantas oficiais com anjinhos. Não sei se ela é nome de rua. Deveria ser. Sobreviveu ao latifúndio que deteriora. Sobreviveu ao seu executor e mandante. Sobrevive naquela capela no cemitério, meu caminho obrigatório para acessar o tumulo do meu pai.

Quando passo por lá sozinha, pensando na Elaine espevitada, que nem sei se sobreviveu a prostituição que tinha como herança e na "Guapa" que acho "muito tudo", faço o sinal da cruz e digo: "EE AAAÊEE GURIAS"!!! E assim o vento levou o tempo, mas nunca o meu respeito e admiração por quem corajosamente, por um breve tempo sobreviveu ao preconceito".


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