quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Devoto de Sepé

Em abril de 2006, o fotógrafo Emerson Souza, o motorista Cristiano Pacheco Maciel e eu deixamos Porto Alegre em direção ao pampa gaúcho e argentino, numa viagem que se estenderia por 10 dias. Era a primeira etapa de apurações da série de reportagens "O Novo Retrato do Pampa", que seria publicada em julho daquele ano.

A etapa seguinte seria realizada pelo repórter Nilson Mariano, meu colega de editoria de Geral e também integrante do projeto, em parceria com o mesmo Emerson. Eles viajariam no mês seguinte pelo extremo sul do Estado e pelo território uruguaio.

Cruzamos a ponte do Guaíba com o objetivo de mostrar as modificações em curso na Fronteira Oeste e na pampa argentina. Buscávamos revelar o impacto no Rio Grande profundo da revolução provocada pela pecuária de ponta. Em meio a metamorfose, também entrevistaríamos domadores, peões de estância, carreteiros, benzedeiras, cultuadores de santos populares — tipos característicos do pampa, cascos de nossa história, homens e mulheres que resistem à modernização.

E foi em busca deles que travei um diálogo improvável, uma conversa que só a estrada oferece aos repórteres. Num final de tarde, buscávamos um devoto de Sepé Tiaraju, um santo popular adorado pelo autêntico pampiano.

Em Caiboaté, distrito de São Gabriel, onde uma cruz gigantesca lembra o local em que o índio guarani tombou contra espanhóis e portugueses, no século 18, encontrei o peão Eder Mazoni Silva da Silva, que tocava a cavalo um rebanho de hereford, com o filho Lucas, quatro anos, montado na garupa.

A foto era ótima: fim de tarde, cavalo, peão, gado, criança. Restava apenas um detalhe: Silva seria devoto de Sepé? Após as tradicionais amenidades de um começo de conversa, fui ao ponto:
— O senhor é devoto de Sepé Tiaraju? — Não — devolveu Silva, meio desconfiado.

— E o senhor conhece alguém seja devoto de Sepé aqui na região — insisti. — Não! — continuou Silva, num tom mais alto e meio desconfiado com forasteiro curioso. Já sem esperança, fiz a pergunta que deveria ter feito desde o começo do diálogo: — O senhor conhece alguém que reze para Sepé aqui na cruz?

Silva, então, abriu um sorriso e anunciou: — Eu mesmo rezo aqui! Surpreso, ponderei:

— Mas o senhor acabou de dizer que não era devoto de Sepé… Silva respondeu com uma pergunta desconcertante, mostrando que clareza, objetividade e, sobretudo, simplicidade, antes de balizar o texto de um repórter, devem nortear a condução de uma entrevista: — E eu vou saber o que é devoto? (Fonte: Carlos Etchichury - Jornal "Zero Hora", de Porto Alegre)



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