A presença de personagens populares que perambulam pelas ruas de
nossa cidade é um fenômeno não só nosso, mas que se repete em todos os lugares.
Lembro que na minha infância, em Dom Pedrito, onde nasci, havia muitas dessas
pessoas, que traziam consigo comportamentos os mais diferentes. O “Vadito” e o
“Goda”, por exemplo, eram doentes mentais, que reagiam com violência às
brincadeiras da meninada.
Havia também um guarda da Praça central da cidade, que a meninada,
entre as quais eu me incluía, chamava de “João Morto”. O homem virava bicho e
corria de um lado a outro da praça, porém, sem conseguir pegar ninguém.
São Gabriel foi sempre pródiga na presença dessas irreverentes
criaturas. Os mais antigos devem lembrar-se de muitas delas, como o “Gomercindo
Louco”, que costumava dormitar ao longo de qualquer calçada, apoiado na parede
de algum prédio que garantisse uma boa sombra.
Nos momentos de maior lucidez até que era um homem trabalhador,
sempre disposto a ajudar em alguma tarefa doméstica. Mas bastava algum guri lhe
chamar de “louco”, para que corresse rua afora com um relho na mão. Ao que se
sabe, nunca conseguiu alcançar nenhum desses moleques atrevidos.
Então só restava a “Gomercindo” como consolo, gritar aos berros
frases como essas: “Tu pensa, sem vergonha, que tua mãe é santa? É p.. igual às
outras e dorme até com o Mário da Botica!” E também: “Tua tia é largada, dorme
com os soldados do 3º!”. E dê-lhe mais insultos: “E tua irmã que mora no “Beco
do Sebo”? Vem de madrugada pra casa e não cuida dos fio!”.
Como quase sempre depois de desfiar palavrões, acabava dormindo na
cadeia, tinha verdadeiro horror de polícia. E também não gostava de mulheres,
pois nenhuma delas lhe prestava “favores”. Até porque, era comentário geral,
que ele só tomou banho quando nasceu. E andava, além de sujo, maltrapilho.
Confesso que não tenho a menor ideia da época em que viveram
alguns desses intrigantes personagens. De uns eu ouvi falar, de outros não
tenho nem ideia. Nas minhas andanças por coleções de velhos jornais, livros e
revistas, tomei conhecimento da existência de muitos deles.
E guardei informações em meus arquivos, na esperança de que algum
dia elas pudessem ser úteis. E agora, a Ana Rita me deu a oportunidade de
relembrar dessas figuras que em algum momento participaram indiretamente de
nossas vidas.
É o caso de “Maria Fon-Fon”, uma velha miúda e encarquilhada, que
ninguém sabia dizer quantos anos tinha. Vivia andando pelas ruas da cidade
pedindo esmolas. Tinha dificuldade para falar, era desdentada e fanhosa e fazia
caretas e trejeitos.
Apesar do aspecto, “Maria Fon-Fon” era uma pessoa muito bondosa.
Não admitia que alguém maltratasse os animais, especialmente os cães. Nessa
hora ela se valia da bengala para afastar os agressores. Também gostava muito
de crianças.
Nem por isso ela foi poupada pela meninada de então, que descobriu
que na sua mocidade ela teve um romance com outro tipo popular da cidade, conhecido
por “Monte Real”, que era continuo vitalício do Clube Caixeiral. E davam-lhe
dinheiro para que contasse as cenas mais pornográficas desse romance.
“Monte Real” tinha boa conversa e gostava de contar piadas. Não
era muito viajado. Na primeira vez que andou de trem, já sexagenário, admirava
a paisagem pela janela do vagão. Quando o trem parou na primeira estação, ele
extasiado falou: “Puxa, como é grande esse Brasil”.
Quanto à aventura erótica com “Maria Fon-Fon” ele negava para
quase todos, a não ser para algum amigo do peito, a quem dizia ser verdade.
Tinha também a “Tia Chica”, uma negra mina alforriada que morava
sozinha em um ranchinho de barro e santa fé. Tinha cerca de 90 anos de idade.
Nos momentos de lucidez, ao pé do fogo, gostava de contar que na juventude
morou em uma estância chamada “São João Velho”, que tinha um grande número de
escravos.
De vez em quando ela chamava os vizinhos para ajudarem a consertar
seu rancho. Nessas ocasiões ela preparava comida em uma velha e encascurrada
panela preta. Preparava um almoço que consistia em quirela, charque e temperos
cozidos com graxa rançosa.
Ao destampar a panela desprendia um cheiro insuportável. Mas para
não perder a amizade, o pessoal, mesmo fazendo caretas, acabava comendo.
“Tia Catita” foi uma antiga serviçal de alguns descendentes de
Luiz Gonçalves das Chagas, o “Barão de Candiota”. Ela ganhou de seus patrões um
terreno na Vila Maria, onde fez moradia. Era uma exímia doceira, bastante
procurada para festas. Muito cuidadosa com a higiene, andava sempre
rigorosamente limpa, com roupas enfeitadas de rendas. Certamente o apelido
“Catita” veio daí.
Era conhecida pela bondade extrema. Na Rua das Flores não havia
doente que não contasse com sua assistência. Um caldo para um, docinho para
outro, um chá para um terceiro. E assim levava a vida.
O “Traíra Velho”, cujo nome era Salvador Antônio Pires, foi uma
das figuras populares mais conhecidas na sua época. Seu pai, que tinha o mesmo
nome, foi capitão na “Guerra do Paraguai” e se destacou pela bravura nos campos
de batalha.
“Traíra Velho“ era cambista de profissão, vendendo bilhetes de
loteria. Gostava de jogar bocha, sendo quase imbatível. Morava em uma casa
construída num terreno que no passado foi cemitério. Dizem que certa vez, ele
ao buscar os chinelos embaixo da cama, encontrou uma ossada humana. Levou um
grande susto.
Como católico fervoroso mandou benzer toda a casa. Também era
metido a poeta, compondo versosque declamava para seus clientes de bilhetes de
loteria. Um dos seus versos mais apreciados dizia:
Ó! Quem me dera/Partir para os páramos de luz?/Para viver
eternamente?/Nos braços de Jesus.
Tinha o “Camões”, que trabalhava na Intendência Municipal
carregando os antigos e desagradáveis “cubos”, que o consagrado humorista
gabrielense, Ney Faria Corrêa, chamava de “Carroção do Desasseio Público”.
Certa vez alguém perguntou a “Camões” como era a vida para um
trabalhador braçal como ele. Sem perder a pose, o nosso herói respondeu: “Eu
não me queixo da vida e vivo feliz. A “coisa” dando para comer está tudo bem”.
Daniel, o popular “Senador”, dizem, tinha uma cara parecida com
“rato” e uma acentuada corcova nas costas. Andava sempre apressado. De manhã,
bem cedo, aparecia nas ruas centrais da cidade e desaparecia ao cair do dia.
Fazia pequenos mandaletes, mas sua predileção girava em torno das
redações dos jornais da época. Também gostava de cinema e circo e distribuía
boletins sobre essas atividades.
Terminada a Revolução de 30, chegou em São Gabriel um sujeito que
era a cara do Daniel. Os gozadores, o apresentaram ao nosso querido amigo como
seu irmão-gêmeo. E Daniel, na sua inocência acreditou, ficando muito contente.
Depois, era comum vê-los de mãos dadas caminhando pelas ruas da
cidade, os dois vestindo uniformes incompletos, remanescentes da revolução
recém-finda. Ate que passado algum tempo os dois romperam o “parentesco”, com
seu sósia indo embora, diziam que para São Paulo.
Daniel vivia com uma mulher bem mais moça que ele, morando em uma
casinha modesta, próxima da “Ponte Seca”. Quase não saía com ela, temeroso que
alguém lhe passasse a perna.
O povo sempre teve queda por acreditar em coisas do sobrenatural.
Havia na cidade um tal de “Mané Rezador”, que criou fama de infalível, para
quebrar mau olhado, esconjurar assombrações, eliminar quebrantos, benzer
sapinho, anular despachos, enfim combater qualquer malefício atribuído ao além.
Suas “armas” eram rezas e gestos cabalísticos, xaropes intragáveis
à base de arruda, losna e outros vegetais tidos como medicinais. Além de
benzeduras com carvão em brasas. Ganhou muita popularidade na cidade.
E o “Bera”, quem se lembra? Vivia sempre borracho. Só gostava de
ouvir causos ou piadas que se referissem a bebidas. O povo não perdoa e criaram
coisas em torno dele, que não devem ser verdadeiras. Como, por exemplo, ao
abrir um jornal só lia manchetes que tivessem “letras garrafais”. Suas músicas prediletas
eram o “Ébrio”, de Vicente Celestino e o tango argentino “esta noche me
emborracho”.
Outra vez ele interessou-se pelas coisas do além. E o pessoal
descobriu que era só porque havia uma tal de “sessão do copo”.
Certa vez adoeceu gravemente e o médico lhe proibiu a bebida
alcoólica. Não reclamou, apenas pediu que colocassem uma garrafa de cachaça
alçada ao alcance de sua mão, para que pudesse acariciá-la de vez em quando. E
“Bera” acabou morrendo, mansamente, sem, nunca mais ter colocado álcool na boca.
É claro que eu não tenho “fichas” completas de todas as figuras
populares que viveram em nossa cidade. De algumas só sei os nomes, como
“Marino”, que costumava carregar latas vazias de Nescau; “Adão Canhão”;
“Parabela”, que virava uma fera quando a gurizada fazia “pápápápápápápá”;
“Comadre “Pelanca”, que morava no antigo “Pito Aceso”; “Barba Azul”, que vendia
amendoim na porta do Cine Harmonia; “Cavaco”; “Polaco Traíra”; “Caxixa”; “Gordo
Pipoqueiro”; “Castelhano”, “Mercadinho e Mercadão”; “Propício” e outros tantos,
todos já falecidos, depois de amargarem uma velhice difícil.
E temos as figuras populares mais recentes. No tempo em que eu presidi a S.E.R. São Gabriel, o Moacir, popularmente conhecido por “Boca” morava em um dos vestiários do Estádio Silvio de Faria Corrêa.
Em razão disso, toda vez que ele me encontrava na rua costumava
gritar: “Nilo Dias, o dono do estádio”. Em minhas andanças por São Gabriel, uma
vez me deparei com ele nas proximidades da prefeitura, vestindo uma camisa do
Palmeiras, de São Paulo.
De resto, não mudou quase nada, um pouco mais gordo e velho, é
verdade. Falou com carinho do saudoso barbeiro João “Babão”, que praticamente o
havia adotado. E sonhador, como sempre foi disse que estava com ideia de se
mudar para Santa Maria, “para não incomodar mais ninguém em São Gabriel”.
É claro que ele falou aquilo, apenas por falar. O “Boca” faz parte
do folclore de nossa cidade, não incomoda a ninguém e não podemos abdicar dele.
Quem não recorda do “velho do saco”, uma figura popular e anônima,
que costumava perambular pelas ruas da cidade, sempre com um saco nas costas e
acompanhado de seu fiel cachorro? Será que ainda é vivo? Nas vezes que tenho
visitado a cidade, nesses 15 anos que moro em Brasília, nunca mais o encontrei.
O “velho do saco” não fazia mal a ninguém. Era ou é, apenas um
deserdado da sorte, igual a tantos outros que fizeram das ruas suas moradias.
Mas com certeza muitas crianças mal comportadas foram amedrontadas pelos pais,
com a simples citação de seu “nome”.
Ele parecia reencarnar a figura lendária de um velho que carregava
em um saco, crianças que não se comportavam bem. Pura fantasia.
Quem sabe me dizer o que houve com aquele moreno alto e magro, que
se ajoelhava a todo o momento, em suas intermináveis caminhadas pelas ruas da
cidade. Dizem que ele morava no interior do município e ficou ruim da cabeça,
depois de ter entrado para uma igreja.
E que fim levou aquele rapaz que puxava um caminhão feito de tábua
e lata, e que diariamente subia e descia à avenida Francisco Hermenegildo?
Tivemos ainda a “Princesa”, cujo nome verdadeiro eu não sei e a
Glória, sua filha. Esta última eu conheci. As duas eram pessoas pobres. A
“Princesa” vivia da caridade alheia, mas tinha uma postura e elegância natas,
apesar das roupas esfarrapadas. Ela realmente possuía ares de uma princesa,
batom nos lábios e muito ruge no rosto. Não sei quem lhe deu o apelido, mas o
certo é que caiu como uma luva.
Não sei se a Glória ainda é viva. Lembro que ela gostava de usar
sapato de salto alto e o cabelo preso na nuca. Ao exemplo da sua mãe se pintava
e era vaidosa. Muitas vezes era vista carregando balde, vassoura e flores,
caminhando em direção ao cemitério.
Eu presumo que era para enfeitar o túmulo da “Princesa”. Religiosa
ao extremo, Glória não perdia Missa na Igreja Matriz, com véu na cabeça e
rosário nas mãos. Foram duas figuras que ficaram na lembrança e na história da
cidade.
Uma pessoa bastante conhecida na cidade foi a dona Cecília, figura
folclórica de São Gabriel e popularmente conhecida pelo apelido de “Velha das
Pombas”.
Durante mais de 60 anos foi proprietária de uma casa de alta
rotatividade, no famoso “Beco do Nicola”, cuja maior clientela era oriunda do
interior do município. A casa, pelo que sei, ainda continua funcionando, para
alegria dos fiéis fregueses. Mas não sei dizer quem está no comando.
E o “Camarão”? Parece que já morreu. Virava uma fera quando alguém
o chamava pelo apelido e soltava um dicionário de palavrões. Dizem que foi
muito rico, e um esperto advogado da cidade ficou com tudo que seria dele,
oriundo de uma herança.
No decorrer dos anos, foram muitas as figuras populares e
folclóricas que frequentaram os estádios e campos de futebol de São Gabriel.
Num passado mais recente, tivemos a “Margarida”, torcedora
fanática da S.E.R. São Gabriel, que vendia amendoim torrado no Estádio Silvio
de Faria Corrêa. A todo o momento, ela se virava em direção ao gramado e
gritava: “Viva o São Gabriel”, enquanto levantava o vestido para delírio dos
demais torcedores.
Outro personagem, “Santo Louco”, não perdia um só jogo da S.E.R.
São Gabriel, uma de suas paixões, a outra era o Internacional.
Inexplicavelmente para quem o conhecia, sempre chegava ao estádio completamente
sóbrio. E quando o autor deste artigo era o presidente da S.E.R. São Gabriel, o
“Santo” sempre assistia aos jogos a título de cortesia.
Quase sempre era visto frente à Santa Casa, deitado no chão,
embriagado. Certa vez ele acordou o colunista, em pleno inverno, às 6 horas da
manhã para pedir dinheiro. Diariamente ia a Farmácia do saudoso Argeu Machado,
em busca de uns garantidos trocados.
Havia também Francisco Oliveira, o “Chicão”, um moreno alto e
gordo, pintor aposentado, que ia ao estádio depois de tomar umas e outras e
gostava de exigir raça do time. Por isso costumeiramente gritava: “SANGUE”.
E os gozadores de plantão não perdoavam e revidavam: “Cala a boca
Feijão Azedo”. E o Chicão retrucava: “É a mãe”. Em seus últimos anos de vida
morava no Asilo São João. Ele faleceu em meados de 2011, aos 75 anos de idade.
Em 2012, uma competição futebolística promovida pelo Ginásio São
Gabriel levou seu nome, uma homenagem bastante justa para quem fez do futebol
uma das grandes paixões de sua vida.
Outro torcedor que o autor não recorda o nome, sempre devidamente
alcoolizado passava o jogo inteiro no estádio, tocando um pandeiro sem ver o
jogo. (Pesquisa e texto: Nilo Dias. Fontes: Arquivo Pessoal – Livro Crônicas
duma cidade do Sul, de autoria de Aristóteles Vaz de Carvalho e Silva. Jornal
“O Imparcial” e Redes Sociais - Publicado no jornal "O Fato")
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