domingo, 13 de novembro de 2016

A Revolução dos horrores (Parte 1)

O jornalista e escritor Juremir Machado da Silva, escreveu no jornal “Correio do Povo”, de Porto Alegre, durante os festejos da “Semana Farroupilha” deste ano, um interessante artigo com o título de “Aos nossos degoladores, com afeto”.

Disse o jornalista que em uma viagem sua para Camaquã, onde foi patrono da “Feira do Livro”, o historiador Luiz Cláudio Knierim, que se tornou muito conhecido depois de ter chamado o acampamento farroupilha de Porto Alegre de “favelão gaudério”, lembrou que estamos rememorando os 120 anos da “Revolução Federalista de 1893”, a revolução da degola.

E, também, os 90 anos da “Revolução de 1923”, o conflito que acabou com o reinado de Borges de Medeiros baseado em eleições fraudadas em que mortos votavam e vivos eram levados no cabresto. E pergunta: “Por que não comemoramos tudo isso?”

Conta que existe um livro maravilhoso sobre nossos heroicos tempos da degola: “Voluntários do martírio, narrativa da revolução de 1893”, do médico e protagonista dos acontecimentos, Ângelo Dourado. É um catálogo dos horrores.

Ângelo Dourado conta que a crueldade na região serrana foi tanta que a simples narração dos fatos causa repugnância. Lembra que, em Cruz Alta, no “Rincão do Cadeado”, havia 108 viúvas de “maragatos” degolados, e que no “Rincão da Cruz”, contavam-se pelos nomes, 86 vítimas da degola.

E que esses números poderiam ser maiores. O município mãe de Passo Fundo era governado pelo caudilho José Gabriel da Silva Lima, que dizia jamais ter pensado que a carne humana fosse tão boa para engordar cães e porcos. Os federalistas ou seus simpatizantes eram presos à noite e, depois, pela manhã, retirados em grupos para serem executados.

Ângelo Dourado é fiel em suas descrições. Conta que quando chegaram em Carazinho os federalistas sentiram o poder da guerra psicológica movida pelos pica-paus. Toda a população do povoado fugira para os matos, levando os velhos e as crianças.

Apenas uma mulher ficara na povoação, dizendo que preferia ver os “maragatos” a morrer de frio nas brenhas e que os republicanos é que eram maus, pois prendiam, açoitavam e matavam, enquanto os revolucionários passavam sem nada fazer, sem arrombar uma casa sequer.

Para os menos afeitos a livros volumosos, Juremir recomenda “Maragatos e pica-paus – guerra civil e degola no Rio Grande”, do saudoso Carlos Reverbel. Eu tenho o livro, é verdadeiramente uma obra prima, na medida em que mostra como nossos degoladores eram eficientes e dedicados.

Reverbel resume tudo cirurgicamente: “A revolução de 93 teve a duração de 31 meses e fez nada menos do que 10 mil vítimas. Destas, mais de mil morreram por degolamento, calculando-se meio por baixo, sem querer forçar os algarismos”.

Chega-se a esta conclusão levando-se em conta a estatística das duas grandes sessões de degolas da revolução, “Rio Negro” e “Boi Preto”, em que as duas perfazem um total aproximado de 700 gargantas cortadas.

Prossegue Reverbel: “Um método limpo, ecológico e econômico”. A sucção, por lâmina cortante, do feixe vásculo nervoso do pescoço, ocasiona o desfalecimento em segundos e a morte em minutos.

MARAGATOS E CHIMANGOS

“Maragato” foi o nome dado aos sulistas que iniciaram a “Revolução Federalista” no Rio Grande do Sul em 1893, em protesto a política exercida pelo governo federal representada na província por Júlio de Castilhos. Os “maragatos” eram identificados pelo uso de um lenço vermelho no pescoço.

O termo tinha uma conotação pejorativa atribuída pelos legalistas aos revoltosos liderados por Gaspar da Silveira Martins, eminente tribuno, e caudilho estrategista e Gumercindo Saraiva, que deixaram o exílio, no Uruguai, e entraram no Rio Grande do Sul à frente de um exército de lenços vermelhos.

Como o exílio havia ocorrido em região do Uruguai colonizada por pessoas originárias da “Maragateria” (na Espanha), os republicanos, então chamados “Pica-paus”, os apelidaram de “Maragatos”, buscando caracterizar uma identidade "estrangeira" aos federalistas.

Com o tempo, o termo perdeu a conotação pejorativa e assumiu significado positivo, aceito e defendido pelos federalistas e seus sucessores políticos.

Na “Revolução de 1923” desencadeada contra a permanência de Borges de Medeiros no governo do estado, novamente a corrente “maragata” rebelou-se, liderada pelo diplomata e pecuarista Assis Brasil.

Seus antagonistas que detinham o governo eram chamados no Rio Grande do Sul, de “Chimangos”, comparando-os à ave de rapina. O lenço vermelho identificava o “Maragato”. O lenço branco identificava o “Pica-pau” e o “Chimango”.

O movimento originou, no Rio Grande do Sul, o “Partido Libertador”, de grande influência regional.

Os federalistas de Gaspar Silveira Martins queriam o fim da ditadura de Júlio de Castilhos. Em “Rio Negro”, perto de Bagé, os “maragatos” passaram a faca nos castilhistas. O negro Adão Latorre teria degolado 300 inimigos sozinho.

O troco veio em “Boi Preto”, em 5 de abril de 1894, no município de Palmeira: de 400 federalistas que caíram prisioneiros, 300 foram degolados.

UM DEGOLADOR PERFEITO

Adão Latorre era perfeito na técnica de exímio degolador das forças federalistas na “Revolução de 1893”. Contido o inimigo, encostava a faca na ponta do nariz do prisioneiro que elevava a cabeça, então a afiadíssima lâmina era introduzida agilmente no pescoço, incisando horizontalmente as estruturas do osso hioideo, de orelha a orelha.

Solta imediatamente a vítima dava um ou dois passos, emitia um grunhido terrível e caia desfalecida. Quando isto não acontecia, o degolamento era incompleto. A vítima era novamente agarrada para executar o "jorramento" do sangue e completar o ato da execução.

Com uma adaga de 15 centímetros, Latorre foi o grande executor. Entre as vítimas estava o oficial “Chimango” Manoel Pedroso, acusado de ter mandado matar a família de Latorre em Bagé, meses antes.

E dizem os que escaparam que Adão chamava um a um e mandava-os pronunciar a letra jota. Aquele que, em vez de jota, pronunciava “rota”, era castelhano e recebia, incontinenti, o aço afiado que lhe abria o talho de orelha a orelha.

Adão Latorre foi morto por fuzilamento na “Revolução de 1923”, pelas rajadas das primeiras metralhadoras utilizadas em guerra no Rio Grande do Sul, e teve seu cadáver degolado.

Foi designado um pelotão para fazer o translado do seu corpo do “Passo da Maria Chica”, na localidade de Ferraria, em Dom Pedrito para Bagé, sendo sepultado no “Cemitério dos Anjos”, em outro ponto da estrada do “Tigre”, em um filete de terra dentro de uma propriedade rural, onde se encontra até hoje, juntamente com seu irmão, o major João Latorre.

O “Cemitério dos Anjos” entrou no esquecimento. Quase não há visitantes, tampouco flores. Somente mato e tumbas esquecidas, um túmulo cravejado a balas e outros demolidos.

Segundo informações, Adão Latorre foi fuzilado pelos capangas do major Antero Pedroso, irmão de Manoel Pedroso em uma emboscada. Ele tinha pouco mais de 80 anos de idade.

A tapera de sua casa se decompõe e desaparece, aos poucos, silenciosa, à beira da estrada que conduz ao “Passo do Tigre”, periferia da cidade de Bagé, em direção ao “Forte Santa Tecla”. Só existe uma parede levantada, muito mato tomando conta e um poço esquecido. Poucos vão visitar.

Contavam muitas histórias a respeito de Adão Latorre. Uma delas fala que existiam questões nunca resolvidas entre os irmãos Tavares, a quem o degolador servia.

Manoel Pedroso, levado ao sacrifício indagou do seu carrasco, Adão: “Quanto vale a vida de um homem valente de bem?” E a resposta veio pronta e seca: “Valente pode ser! De bem não sei, não. A tua vida não vale nada, pois está no fio da minha faca”. O coronel levantou a cabeça oferecendo o pescoço e dizendo: “Então, degola negro filho da puta”.

A MORTE DE GUMERCINDO SARAIVA

A história a seguir está contada no livro “Maragatos e Pica-paus, Guerra Civil e Degola no Rio Grande do Sul”, de autoria do escritor Carlos Reverbel.

Gumercindo Saraiva morreu em 10 de agosto de 1894, após ser atingido por um tiro, desferido à traição, enquanto reconhecia o terreno na véspera da “Batalha do Carovi”. O tiro pegou no tórax, dera certo à tocaia, e o lugar ficou conhecido como “Capão da Batalha”, em área hoje situada no município de “Capão do Cipó”, próximo a Santiago.

Gumercindo também marchava morto, em cima de uma carreta. Mas também marchava. Aos lados, fazendo alas, como numa guarda de honra, marchavam os seus capitães ajudantes de ordens, Lindolfo Weber, Hilário Montiel, João e Henrique Freitas e os seus tenentes ajudantes de ordens, Jerônimo Freitas, Pedro Cabrera e os irmãos Garcia.

Como se ele ainda pudesse precisar dos seus cuidados, o doutor Lucas Bicalho Hungria, primeiro tenente médico do “Encouraçado Aquidabã”, que havia se incorporado ao “Exército Libertador” em Santa Catarina, não se afastava da carreta mortuária.

Ângelo Dourado, o outro médico da coluna, “baiano de bombacha e espada”, no dizer de Augusto Meyer, se ausentara para levar à tropa a última palavra do chefe morto, mas ainda o chefe.

Ele tombara, mas a coluna ainda marchava sob a sua voz de comando. E assim se fez sua última vontade durante toda aquela noite.

No dia seguinte, 11 de agosto, a coluna se deteve às oito e meia da noite, junto ao “Cemitério dos Capuchinhos de Santo Antônio”, um campo santo rústico de campanha, situado entre os rios Camaquã e Itacurubi, nas cercanias da Estância de Antônio Moraes, quase na divisa dos municípios de Santiago do Boqueirão e São Borja.

Baixado o corpo da carreta, ainda coberto com o velho poncho, agora fazendo vezes de mortalha e esquife, foi lhe dado sepultura, quando já anoitecera. Lavrou-se uma ata da cerimônia, assinada por diversos oficiais superiores da coluna e por Cícero Saraiva, representando a família.

Aparício, de acordo com a última ordem do irmão, estava ausente, tomando muito cuidado com o flanco esquerdo da coluna, enquanto Torquato Severo, obedecendo à mesma voz de comando, fazia a retaguarda.

Em 12 de agosto de 1894, um dia após o sepultamento de Gumercindo Saraiva, as forças do “Exército do Norte” que perseguiram os federalistas, chegaram ao “Cemitério dos Capuchinhos de Santo Antônio”.

Desta vez não era a Brigada do coronel Manoel do Nascimento Vargas, que fazia a vanguarda da tropa governista. Era a Brigada do coronel Firmino de Paula, também integrante da “Divisão do Norte”.

Informado de que Gumercindo Saraiva havia sido sepultado naquele local, Firmino mandou reabrir a cova e dela retirar o cadáver do general revolucionário. Colocando-o na beira da estrada, situada um pouco a frente do pequeno cemitério campeiro, ali postou-se a espera da passagem da “Divisão do Norte”.

Esta não tardou a aparecer no alto da coxilha, com os seus cinco mil homens no fastígio do papel que lhes coubera desempenhar na revolução.

Era tal, porém, a fama com que aureolava o nome de Gumercindo Saraiva, como guerrilheiro quase lendário, que os chefes da “Divisão do Norte” fizeram a tropa desfilar ao lado de seu cadáver, para todos ficarem certos de que ele havia efetivamente sido derrotado e estava morto.

A HISTÓRIA DAS CHAPELEIRAS

Era como se estivessem desfilando sobre os despojos da própria revolução. Além de ter chamado para si a profanação da sepultura, o coronel Firmino mandou cortar a cabeça do corpo de Gumercindo, recolhendo-a como precioso troféu, não para si, mas destinada a alguém que julgava mais merecedor de recebê-la.

Então a confiou ao coronel Ramiro de Oliveira, confidenciando-lhe, ao mesmo tempo, a missão que lhe caberia desempenhar. O coronel tocou-se para Porto Alegre, hospedando-se no “Hotel Lagache”, acompanhado de seu ordenança.

O Hotel Lagache, fundado por Gustavo Maynard ficava situado na rua Marechal Floriano. Depois os sócios desfizeram-se do hotel e compraram o “Hotel Brasil”, na Rua dos Andradas, em frente a Praça da Alfândega, situado num antigo prédio onde hoje encontra-se a sede do “Clube do Comércio”. Remodelado, desde 1908 passou a se chamar de “Grande Hotel”.

Sem perda de tempo, encaminhou-se a uma chapelaria, estabelecida na Rua da Praia, onde adquiriu duas chapeleiras. Explicação para a aquisição de duas chapeleiras, segundo o jornalista, ensaísta, poeta, memorialista e folclorista Augusto Mayer: “Para falar a verdade, entra no caso outra cabeça, mas até hoje não se sabe a que tronco pertencia”.

De posse das duas caixas de chapéu, o coronel retornou ao quarto do “Hotel Lagache”. Depois de curta demora, saiu novamente à rua, dessa vez acompanhado do seu ordenança que lhe seguia os passos, guardando certa distância e carregando zelosamente, as duas chapeleiras.

Dirigiram-se para a “Praça Quinze”, onde tomaram um carro, tirado a dois cavalos, mandando o boleeiro tocar para a “Praça da Matriz”. Chegando ao “Palácio do Governo”, informa Augusto Meyer, o coronel foi logo recebido por Júlio de Castilhos, que tratou de saber do misterioso conteúdo daquelas caixas, colocadas bem à vista em cima da mesa, na sala de recepção.

Ao tomar conhecimento da natureza dos troféus que lhe estavam sendo entregues, Castilhos, possuído por violenta cólera, cortou a palavra do sinistro visitante.

E aos gritos mandou que se retirasse. Numa das chapeleiras estava à cabeça de Gumercindo Saraiva. A que ocupava a outra chapeleira jamais foi identificada. Não chegaram sequer a ser abertas na presença de Castilhos, tal o seu assomo de revolta em face da tentativa.

Ele havia fechado os olhos a muita violência contra os adversários, mas não era sádico e muito menos insano. Depois, sabia naquelas alturas que a revolução estava nos seus últimos dias. “Compreendo agora”, teria desabafado no seu assomo de revolta, “porque o povo anda a apontar-me como responsável pelas atrocidades que se pratica em nome da lei”.

O caso das chapeleiras transpirou. Dele se falava à boca pequena nas rodas palacianas. O coronel, na maior das frustrações, reduzidas a zero, quando esperava copiosas benesses republicanas, tratou logo de retornar ao aconchego de seu acampamento.

Momentos antes de tomar o trem, o coronel foi procurado, ainda no quarto do hotel, pelo gerente do jornal “A Federação”, que se fazia acompanhar de alguns amigos e correligionários mais chegados.

Sabedor do episódio, o zeloso gerente desejava saber o fim que tinha sido dado às duas chapeleiras e respectivas cabeças. Elas ainda estavam ali no quarto, embaixo da cama. E o coronel disse que pretendia jogá-las no rio, de dentro do trem, ao passar por uma grande ponte.

O homem de “A Federação” não aprovou a idéia, pelo menos em relação a uma cabeça. Achou que era merecedora de melhor sorte. E sentenciou: “Quem combate com lealdade o adversário político ainda em vida, está na obrigação de respeitá-lo depois de morto”.

Então, com a concordância do coronel, apossou-se da cabeça de Gumercindo Saraiva e foi enterrá-la nos alicerces da casa onde morou, no “Beco do Liceu”. A outra cabeça, provavelmente tenha sido jogada em algum rio.

E Augusto Meyer conclui a sua narrativa do episódio, com estas palavras: “Quanta gente anos a fio, subia e descia a “Ladeira do Liceu”, sem saber que no porão daquela casa, perto da antiga “Chefatura de Polícia”, estava escondida a cabeça, protesto mudo contra as mentiras da doutrinação política, contra as omissões conscientes ou inconscientes dos historiadores”.

E mais de uma coisa neste conto verdadeiro, dá o que pensar. Por exemplo: todos os que andaram às voltas com a fatal cabeça, começaram a desandar na vida.

O coronel passou ao ostracismo político; Júlio de Castilhos morreu na mesa de operação, ainda em pleno vigor; o gerente do jornal “A Federação” enlouqueceu; e os seus amigos ficaram marcando passo, dois para a frente e dois para trás.

O GUERRILHEIRO PAMPEANO

Outro livro que não pode deixar de ser lido é "Gumercindo Saraiva - O Guerrilheiro Pampeano", do saudoso escritor Sejanes Dorneles, que tive a honra de conhecer e de ser seu amigo.

Essa obra é ainda mais completa, pois além do período da revolução federalista, traz outros detalhes da vida de Gumercindo, em especial da época em que o caudilho viveu em Santa Vitória do Palmar, terra adotiva do escritor.

Sandra Pesavento, noutro livrinho introdutório, “A revolução federalista”, sintetizou: “O certo é que de ambos os lados generalizou-se a prática da “degola”, forma de execução rápida e barata, uma vez que não requeria emprego de arma de fogo”.
 
A “Revolução Farroupilha” não tem graça, em número de mortos e de situações singulares, quando comparada com a de 1893. Disso resulta a incompreensão: por que não se faz feriado para comemorar esse momento maior das nossas façanhas? Por que não fazemos mais filmes, minisséries e poemas sobre isso?

Na sua palestra, Knierim mostrou com imagens como a “dança do facão”, parte do sagrado folclore gauchesco, foi adaptada por Paixão Cortes com base nas informações da “Negra Paim” sobre o “maculelê” dos escravos. (Continua na próxima edição - Publicado no jornal "O Fato", de São Gabriel (RS), edição de 28 de outubro de 2016 - Pesquisa: Nilo Dias)


Nenhum comentário:

Postar um comentário