O jornalista e escritor Juremir Machado da Silva, escreveu no
jornal “Correio do Povo”, de Porto Alegre, durante os festejos da “Semana
Farroupilha” deste ano, um interessante artigo com o título de “Aos nossos
degoladores, com afeto”.
Disse o jornalista que em uma viagem sua para Camaquã, onde foi
patrono da “Feira do Livro”, o historiador Luiz Cláudio Knierim, que se tornou
muito conhecido depois de ter chamado o acampamento farroupilha de Porto Alegre
de “favelão gaudério”, lembrou que estamos rememorando os 120 anos da
“Revolução Federalista de 1893”, a revolução da degola.
E, também, os 90 anos da “Revolução de 1923”, o conflito que
acabou com o reinado de Borges de Medeiros baseado em eleições fraudadas em que
mortos votavam e vivos eram levados no cabresto. E pergunta: “Por que não
comemoramos tudo isso?”
Conta que existe um livro maravilhoso sobre nossos heroicos tempos
da degola: “Voluntários do martírio, narrativa da revolução de 1893”, do médico
e protagonista dos acontecimentos, Ângelo Dourado. É um catálogo dos horrores.
Ângelo Dourado conta que a crueldade na região serrana foi tanta
que a simples narração dos fatos causa repugnância. Lembra que, em Cruz Alta,
no “Rincão do Cadeado”, havia 108 viúvas de “maragatos” degolados, e que no
“Rincão da Cruz”, contavam-se pelos nomes, 86 vítimas da degola.
E que esses números poderiam ser maiores. O município mãe de Passo
Fundo era governado pelo caudilho José Gabriel da Silva Lima, que dizia jamais
ter pensado que a carne humana fosse tão boa para engordar cães e porcos. Os federalistas
ou seus simpatizantes eram presos à noite e, depois, pela manhã, retirados em
grupos para serem executados.
Ângelo Dourado é fiel em suas descrições. Conta que quando
chegaram em Carazinho os federalistas sentiram o poder da guerra psicológica movida
pelos pica-paus. Toda a população do povoado fugira para os matos, levando os
velhos e as crianças.
Apenas uma mulher ficara na povoação, dizendo que preferia ver os
“maragatos” a morrer de frio nas brenhas e que os republicanos é que eram maus,
pois prendiam, açoitavam e matavam, enquanto os revolucionários passavam sem
nada fazer, sem arrombar uma casa sequer.
Para os menos afeitos a livros volumosos, Juremir recomenda
“Maragatos e pica-paus – guerra civil e degola no Rio Grande”, do saudoso Carlos
Reverbel. Eu tenho o livro, é verdadeiramente uma obra prima, na medida em que
mostra como nossos degoladores eram eficientes e dedicados.
Reverbel resume tudo cirurgicamente: “A revolução de 93 teve a
duração de 31 meses e fez nada menos do que 10 mil vítimas. Destas, mais de mil
morreram por degolamento, calculando-se meio por baixo, sem querer forçar os
algarismos”.
Chega-se a esta conclusão levando-se em conta a estatística das
duas grandes sessões de degolas da revolução, “Rio Negro” e “Boi Preto”, em que
as duas perfazem um total aproximado de 700 gargantas cortadas.
Prossegue Reverbel: “Um método limpo, ecológico e econômico”. A
sucção, por lâmina cortante, do feixe vásculo nervoso do pescoço, ocasiona o
desfalecimento em segundos e a morte em minutos.
MARAGATOS E CHIMANGOS
“Maragato” foi o nome dado aos sulistas que iniciaram a “Revolução
Federalista” no Rio Grande do Sul em 1893, em protesto a política exercida pelo
governo federal representada na província por Júlio de Castilhos. Os “maragatos”
eram identificados pelo uso de um lenço vermelho no pescoço.
O termo tinha uma conotação pejorativa atribuída pelos legalistas
aos revoltosos liderados por Gaspar da Silveira Martins, eminente tribuno, e
caudilho estrategista e Gumercindo Saraiva, que deixaram o exílio, no Uruguai,
e entraram no Rio Grande do Sul à frente de um exército de lenços vermelhos.
Como o exílio havia ocorrido em região do Uruguai colonizada por
pessoas originárias da “Maragateria” (na Espanha), os republicanos, então chamados
“Pica-paus”, os apelidaram de “Maragatos”, buscando caracterizar uma identidade
"estrangeira" aos federalistas.
Com o tempo, o termo perdeu a conotação pejorativa e assumiu
significado positivo, aceito e defendido pelos federalistas e seus sucessores
políticos.
Na “Revolução de 1923” desencadeada contra a permanência de Borges
de Medeiros no governo do estado, novamente a corrente “maragata” rebelou-se,
liderada pelo diplomata e pecuarista Assis Brasil.
Seus antagonistas que detinham o governo eram chamados no Rio
Grande do Sul, de “Chimangos”, comparando-os à ave de rapina. O lenço vermelho
identificava o “Maragato”. O lenço branco identificava o “Pica-pau” e o
“Chimango”.
O movimento originou, no Rio Grande do Sul, o “Partido
Libertador”, de grande influência regional.
Os federalistas de Gaspar Silveira Martins queriam o fim da
ditadura de Júlio de Castilhos. Em “Rio Negro”, perto de Bagé, os “maragatos”
passaram a faca nos castilhistas. O negro Adão Latorre teria degolado 300
inimigos sozinho.
O troco veio em “Boi Preto”, em 5 de abril de 1894, no município
de Palmeira: de 400 federalistas que caíram prisioneiros, 300 foram degolados.
UM DEGOLADOR PERFEITO
Adão Latorre era perfeito na técnica de exímio degolador das
forças federalistas na “Revolução de 1893”. Contido o inimigo, encostava a faca
na ponta do nariz do prisioneiro que elevava a cabeça, então a afiadíssima
lâmina era introduzida agilmente no pescoço, incisando horizontalmente as
estruturas do osso hioideo, de orelha a orelha.
Solta imediatamente a vítima dava um ou dois passos, emitia um
grunhido terrível e caia desfalecida. Quando isto não acontecia, o degolamento
era incompleto. A vítima era novamente agarrada para executar o
"jorramento" do sangue e completar o ato da execução.
Com uma adaga de 15 centímetros, Latorre foi o grande executor.
Entre as vítimas estava o oficial “Chimango” Manoel Pedroso, acusado de ter
mandado matar a família de Latorre em Bagé, meses antes.
E dizem os que escaparam que Adão chamava um a um e mandava-os
pronunciar a letra jota. Aquele que, em vez de jota, pronunciava “rota”, era
castelhano e recebia, incontinenti, o aço afiado que lhe abria o talho de
orelha a orelha.
Adão Latorre foi morto por fuzilamento na “Revolução de 1923”,
pelas rajadas das primeiras metralhadoras utilizadas em guerra no Rio Grande do
Sul, e teve seu cadáver degolado.
Foi designado um pelotão para fazer o translado do seu corpo do
“Passo da Maria Chica”, na localidade de Ferraria, em Dom Pedrito para Bagé,
sendo sepultado no “Cemitério dos Anjos”, em outro ponto da estrada do “Tigre”,
em um filete de terra dentro de uma propriedade rural, onde se encontra até
hoje, juntamente com seu irmão, o major João Latorre.
O “Cemitério dos Anjos” entrou no esquecimento. Quase não há
visitantes, tampouco flores. Somente mato e tumbas esquecidas, um túmulo
cravejado a balas e outros demolidos.
Segundo informações, Adão Latorre foi fuzilado pelos capangas do
major Antero Pedroso, irmão de Manoel Pedroso em uma emboscada. Ele tinha pouco
mais de 80 anos de idade.
A tapera de sua casa se decompõe e desaparece, aos poucos,
silenciosa, à beira da estrada que conduz ao “Passo do Tigre”, periferia da
cidade de Bagé, em direção ao “Forte Santa Tecla”. Só existe uma parede
levantada, muito mato tomando conta e um poço esquecido. Poucos vão visitar.
Contavam muitas histórias a respeito de Adão Latorre. Uma delas
fala que existiam questões nunca resolvidas entre os irmãos Tavares, a quem o
degolador servia.
Manoel Pedroso, levado ao sacrifício indagou do seu carrasco,
Adão: “Quanto vale a vida de um homem valente de bem?” E a resposta veio pronta
e seca: “Valente pode ser! De bem não sei, não. A tua vida não vale nada, pois
está no fio da minha faca”. O coronel levantou a cabeça oferecendo o pescoço e
dizendo: “Então, degola negro filho da puta”.
A MORTE DE GUMERCINDO SARAIVA
A história a seguir está contada no livro “Maragatos e Pica-paus,
Guerra Civil e Degola no Rio Grande do Sul”, de autoria do escritor Carlos
Reverbel.
Gumercindo Saraiva morreu em 10 de agosto de 1894, após ser
atingido por um tiro, desferido à traição, enquanto reconhecia o terreno na
véspera da “Batalha do Carovi”. O tiro pegou no tórax, dera certo à tocaia, e o
lugar ficou conhecido como “Capão da Batalha”, em área hoje situada no
município de “Capão do Cipó”, próximo a Santiago.
Gumercindo também marchava morto, em cima de uma carreta. Mas
também marchava. Aos lados, fazendo alas, como numa guarda de honra, marchavam
os seus capitães ajudantes de ordens, Lindolfo Weber, Hilário Montiel, João e
Henrique Freitas e os seus tenentes ajudantes de ordens, Jerônimo Freitas,
Pedro Cabrera e os irmãos Garcia.
Como se ele ainda pudesse precisar dos seus cuidados, o doutor
Lucas Bicalho Hungria, primeiro tenente médico do “Encouraçado Aquidabã”, que
havia se incorporado ao “Exército Libertador” em Santa Catarina, não se afastava
da carreta mortuária.
Ângelo Dourado, o outro médico da coluna, “baiano de bombacha e
espada”, no dizer de Augusto Meyer, se ausentara para levar à tropa a última
palavra do chefe morto, mas ainda o chefe.
Ele tombara, mas a coluna ainda marchava sob a sua voz de comando.
E assim se fez sua última vontade durante toda aquela noite.
No dia seguinte, 11 de agosto, a coluna se deteve às oito e meia
da noite, junto ao “Cemitério dos Capuchinhos de Santo Antônio”, um campo santo
rústico de campanha, situado entre os rios Camaquã e Itacurubi, nas cercanias
da Estância de Antônio Moraes, quase na divisa dos municípios de Santiago do
Boqueirão e São Borja.
Baixado o corpo da carreta, ainda coberto com o velho poncho,
agora fazendo vezes de mortalha e esquife, foi lhe dado sepultura, quando já
anoitecera. Lavrou-se uma ata da cerimônia, assinada por diversos oficiais
superiores da coluna e por Cícero Saraiva, representando a família.
Aparício, de acordo com a última ordem do irmão, estava ausente,
tomando muito cuidado com o flanco esquerdo da coluna, enquanto Torquato
Severo, obedecendo à mesma voz de comando, fazia a retaguarda.
Em 12 de agosto de 1894, um dia após o sepultamento de Gumercindo
Saraiva, as forças do “Exército do Norte” que perseguiram os federalistas,
chegaram ao “Cemitério dos Capuchinhos de Santo Antônio”.
Desta vez não era a Brigada do coronel Manoel do Nascimento
Vargas, que fazia a vanguarda da tropa governista. Era a Brigada do coronel
Firmino de Paula, também integrante da “Divisão do Norte”.
Informado de que Gumercindo Saraiva havia sido sepultado naquele
local, Firmino mandou reabrir a cova e dela retirar o cadáver do general
revolucionário. Colocando-o na beira da estrada, situada um pouco a frente do
pequeno cemitério campeiro, ali postou-se a espera da passagem da “Divisão do
Norte”.
Esta não tardou a aparecer no alto da coxilha, com os seus cinco
mil homens no fastígio do papel que lhes coubera desempenhar na revolução.
Era tal, porém, a fama com que aureolava o nome de Gumercindo
Saraiva, como guerrilheiro quase lendário, que os chefes da “Divisão do Norte”
fizeram a tropa desfilar ao lado de seu cadáver, para todos ficarem certos de
que ele havia efetivamente sido derrotado e estava morto.
A HISTÓRIA DAS CHAPELEIRAS
Era como se estivessem desfilando sobre os despojos da própria
revolução. Além de ter chamado para si a profanação da sepultura, o coronel
Firmino mandou cortar a cabeça do corpo de Gumercindo, recolhendo-a como
precioso troféu, não para si, mas destinada a alguém que julgava mais merecedor
de recebê-la.
Então a confiou ao coronel Ramiro de Oliveira, confidenciando-lhe,
ao mesmo tempo, a missão que lhe caberia desempenhar. O coronel tocou-se para
Porto Alegre, hospedando-se no “Hotel Lagache”, acompanhado de seu ordenança.
O Hotel Lagache, fundado por Gustavo Maynard ficava situado na rua
Marechal Floriano. Depois os sócios desfizeram-se do hotel e compraram o “Hotel
Brasil”, na Rua dos Andradas, em frente a Praça da Alfândega, situado num
antigo prédio onde hoje encontra-se a sede do “Clube do Comércio”. Remodelado,
desde 1908 passou a se chamar de “Grande Hotel”.
Sem perda de tempo, encaminhou-se a uma chapelaria, estabelecida
na Rua da Praia, onde adquiriu duas chapeleiras. Explicação para a aquisição de
duas chapeleiras, segundo o jornalista, ensaísta, poeta, memorialista e
folclorista Augusto Mayer: “Para falar a verdade, entra no caso outra cabeça,
mas até hoje não se sabe a que tronco pertencia”.
De posse das duas caixas de chapéu, o coronel retornou ao quarto
do “Hotel Lagache”. Depois de curta demora, saiu novamente à rua, dessa vez
acompanhado do seu ordenança que lhe seguia os passos, guardando certa
distância e carregando zelosamente, as duas chapeleiras.
Dirigiram-se para a “Praça Quinze”, onde tomaram um carro, tirado
a dois cavalos, mandando o boleeiro tocar para a “Praça da Matriz”. Chegando ao
“Palácio do Governo”, informa Augusto Meyer, o coronel foi logo recebido por
Júlio de Castilhos, que tratou de saber do misterioso conteúdo daquelas caixas,
colocadas bem à vista em cima da mesa, na sala de recepção.
Ao tomar conhecimento da natureza dos troféus que lhe estavam
sendo entregues, Castilhos, possuído por violenta cólera, cortou a palavra do
sinistro visitante.
E aos gritos mandou que se retirasse. Numa das chapeleiras estava
à cabeça de Gumercindo Saraiva. A que ocupava a outra chapeleira jamais foi
identificada. Não chegaram sequer a ser abertas na presença de Castilhos, tal o
seu assomo de revolta em face da tentativa.
Ele havia fechado os olhos a muita violência contra os
adversários, mas não era sádico e muito menos insano. Depois, sabia naquelas
alturas que a revolução estava nos seus últimos dias. “Compreendo agora”, teria
desabafado no seu assomo de revolta, “porque o povo anda a apontar-me como
responsável pelas atrocidades que se pratica em nome da lei”.
O caso das chapeleiras transpirou. Dele se falava à boca pequena
nas rodas palacianas. O coronel, na maior das frustrações, reduzidas a zero,
quando esperava copiosas benesses republicanas, tratou logo de retornar ao
aconchego de seu acampamento.
Momentos antes de tomar o trem, o coronel foi procurado, ainda no
quarto do hotel, pelo gerente do jornal “A Federação”, que se fazia acompanhar
de alguns amigos e correligionários mais chegados.
Sabedor do episódio, o zeloso gerente desejava saber o fim que
tinha sido dado às duas chapeleiras e respectivas cabeças. Elas ainda estavam
ali no quarto, embaixo da cama. E o coronel disse que pretendia jogá-las no
rio, de dentro do trem, ao passar por uma grande ponte.
O homem de “A Federação” não aprovou a idéia, pelo menos em
relação a uma cabeça. Achou que era merecedora de melhor sorte. E sentenciou:
“Quem combate com lealdade o adversário político ainda em vida, está na
obrigação de respeitá-lo depois de morto”.
Então, com a concordância do coronel, apossou-se da cabeça de
Gumercindo Saraiva e foi enterrá-la nos alicerces da casa onde morou, no “Beco
do Liceu”. A outra cabeça, provavelmente tenha sido jogada em algum rio.
E Augusto Meyer conclui a sua narrativa do episódio, com estas
palavras: “Quanta gente anos a fio, subia e descia a “Ladeira do Liceu”, sem
saber que no porão daquela casa, perto da antiga “Chefatura de Polícia”, estava
escondida a cabeça, protesto mudo contra as mentiras da doutrinação política,
contra as omissões conscientes ou inconscientes dos historiadores”.
E mais de uma coisa neste conto verdadeiro, dá o que pensar. Por
exemplo: todos os que andaram às voltas com a fatal cabeça, começaram a
desandar na vida.
O coronel passou ao ostracismo político; Júlio de Castilhos morreu
na mesa de operação, ainda em pleno vigor; o gerente do jornal “A Federação”
enlouqueceu; e os seus amigos ficaram marcando passo, dois para a frente e dois
para trás.
O GUERRILHEIRO PAMPEANO
Outro livro que não pode deixar de ser lido é "Gumercindo
Saraiva - O Guerrilheiro Pampeano", do saudoso escritor Sejanes Dorneles,
que tive a honra de conhecer e de ser seu amigo.
Essa obra é ainda mais completa, pois além do período da revolução
federalista, traz outros detalhes da vida de Gumercindo, em especial da época
em que o caudilho viveu em Santa Vitória do Palmar, terra adotiva do escritor.
Sandra Pesavento, noutro livrinho introdutório, “A revolução
federalista”, sintetizou: “O certo é que de ambos os lados generalizou-se a
prática da “degola”, forma de execução rápida e barata, uma vez que não
requeria emprego de arma de fogo”.
A “Revolução Farroupilha” não tem graça, em número de mortos e de
situações singulares, quando comparada com a de 1893. Disso resulta a
incompreensão: por que não se faz feriado para comemorar esse momento maior das
nossas façanhas? Por que não fazemos mais filmes, minisséries e poemas sobre
isso?
Na sua palestra, Knierim mostrou com imagens como a “dança do
facão”, parte do sagrado folclore gauchesco, foi adaptada por Paixão Cortes com
base nas informações da “Negra Paim” sobre o “maculelê” dos escravos. (Continua
na próxima edição - Publicado no jornal "O Fato", de São Gabriel (RS), edição de 28 de outubro de 2016 - Pesquisa: Nilo Dias)
Nenhum comentário:
Postar um comentário