domingo, 30 de julho de 2017

Um político que deixou saudade

Parece que foi ontem, mas já se vão 24 anos da morte de Carlos Alberto Abrianos Moreira, um político que marcou seu nome na história de São Gabriel para sempre. Fui seu amigo de muitos anos. No dia em que ele morreu, 1 de junho de 1993, a fatalidade se fez presente.

Primeiro, porque o esperei no Bar “A Toca”, do amigo comum, Marciano Bastos, frente à Prefeitura e ele não apareceu. Quase diariamente eu o deixava em casa, no Bairro Menino Jesus.

Segundo, porque quis o destino que ele fosse primeiro a Rádio Batovi, onde apresentava o programa “Batovi Notícias”, ao lado do jornalista Miguel Monte dos Santos.

E aí é que aconteceu a tragédia. Ao tentar atravessar a avenida Mascarenhas de Moraes, um carro dobrou em alta velocidade a esquina da Tristão Pinto e o acertou em cheio. Morreu aos 48 anos de idade.

Eu só fui saber do ocorrido à noite, quando recebi um telefonema do Cláudio Castro. E de imediato eu e a Teresinha, minha esposa, fomos para a Igreja na Tristão Pinto, onde aconteceu o velório. O sepultamento foi no dia seguinte com grande acompanhamento.

Nunca esqueci quando o seu irmão Pedro, me pediu que fosse o primeiro a pegar na alça do caixão, pois indiscutivelmente fui seu melhor amigo. Triste missão, da qual não tinha o direito de me esquivar.

UM HOMEM DE IMPRENSA

Carlos Alberto Moreira, além de político foi um homem de imprensa e músico. Fomos sócios no combativo jornal “Tribuna do Povo” e parceiros no programa “Roda Viva”, na Rádio Tupancy, que alcançou grande audiência na época, em razão de entrevistas polêmicas.

Antes, já havia trabalhado na Rádio São Gabriel, com o programa “Brasil de Todos os Sons”. Também atuou no jornalismo impresso, nos jornais “O Imparcial”, “Eco do Pampa” e “Tribuna do Povo”, do qual foi sócio proprietário.

Mesmo deficiente visual, Carlos Alberto não tinha o menor problema em participar de transmissões de festivais nativistas pela Rádio Batovi.

Certa vez, ele e o locutor Miguel Monti transmitiam a “Gauderiada da Canção Nativa”, desde Rosário do Sul. E Miguel, que era um ótimo profissional, perguntava a Carlos Alberto: “Na sua opinião, quem é o melhor intérprete?” E Carlos Alberto respondia, “fulano”.

“E qual a melhor música”. Carlos Alberto opinava. Até que Miguel lhe perguntou: “E qual a melhor indumentária”: Não restou ao nosso querido Carlos Alberto nada mais que dizer: ”Não sei, sou cego”.

Carlos Alberto tinha pensamento rápido e respostas desconcertantes. Logo que fundamos o jornal “Tribuna do Povo”, ele foi até a Câmara Municipal, em busca de publicidade.

O vereador presidente da Casa, que não vou dizer o nome, negou o pedido sob a desculpa de que o jornal iria chamar seu líder político de “ladrão”. E Carlos Alberto nem pestanejou para retrucar: “Nosso jornal não vai publicar notícias velhas”.

Desde a infância ele desenvolvera aptidão para a música e para a comunicação. Não era um músico profissional, embora dominasse bem o violão. Tinha voz e ritmo para cantar qualquer tipo de música. Obteve até registro de músico profissional na Ordem dos Músicos do Brasil.

TALENTOSO COMPOSITOR

Foi participante ativo do movimento cultural que difundiu festivais de nativismo pelo interior do Estado. Como compositor, teve em “Benzedura”, a sua música de maior sucesso.

Ela foi cantada na “II Ronda da Canção Nativa”, de Alegrete, em 1982 E depois foi gravada e interpretada pelo famoso cantor nativista Wilson Paim e pela cantora Janaína Maia.

É uma das letras mais lindas do cancioneiro gaúcho:

Na medicina campeira/O que o remédio não cura/Se cura com brasa,
prece e tesoura/De quem sabe benzedura.

Sapinho doutor não cura/O bom é mandar benzer/Lá no chiqueiro do porco/A benzedeira pergunta/E manda a mãe responder:

("O que é que eu corto, sapo brabo?"/"Te corto a cabeça e te corto o rabo!"/Benziam durante três dias/Em nome de Deus e da virgem Maria)

E se o bichinho está brabo/Não quer desaparecer/Leve em duas benzedeiras/Não deixe nenhuma da outra saber/Uma que benze no portal/E outra no cocho lá do quintal.

("O que é que eu corto, sapo brabo?"/"Te corto a cabeça e te corto o rabo!"/Benziam durante três dias/Em nome de Deus e da virgem Maria)

Quem vai benzer no futuro/As crianças ao nascer?/Quem benzia está indo embora/E o novo não quer aprender/Tradição e caridade/Que vai desaparecer.

Criança quando novinha/Sofre muito de quebrante/Chora muito e dorme pouco/Diz a crença popular/Que fazendo cruz na testa, com a língua/A mãe pode tirar:/"Eu te pari! Te criarei!/Se tiver quebrante, te tirarei!"

("O que é que eu corto, sapo brabo?"/"Te corto a cabeça e te corto o rabo!"/Benziam durante três dias/Em nome de Deus e da virgem Maria)

Outra linda composição com música de Carlos Alberto, e letra do promotor Nelson Lydio foi "Levanta Gaúcho", gravada em meados de 1987.

Pelo que sei, a música foi um presente de Nelson Lydio, que ao arrumar arquivos pessoais, encontrou a fita com a gravação original e passou-a para mp3.

Ainda sobrava tempo para Carlos Alberto se preocupar com o futebol da cidade. Fazia parte do Conselho Deliberativo da S.E.R São Gabriel, e muitas foram as vezes em que conseguiu patrocínio e saiu as ruas da cidade, no veículo de propaganda do saudoso Jacinto, que também era fotógrafo profissional, para chamar a torcida a assistir os jogos do clube.

CHURRASCOS NO TAMIKA

Lembro dos nossos famosos churrascos dos sábados a tarde na Mercearia do Tamika, na Praça do Bairro Menino Jesus, quando Carlos Alberto soltava o verbo em inspiradíssimos improvisos.

Tenho guardada até hoje uma fita cassette que gravei quando de uma de suas criativas canções, com referência a um famoso político da terra.

As concentrações debaixo das frondosas árvores da praça serviam para todo o tipo de discussões, desde política até futebol. Além da revigorante sombra, é claro.

Eram participantes ativos eu, o Carlos Alberto, seu filho Claudio Moacir, que era ainda um guri, e talvez ali tenha se inspirado para ingressar na política, anos depois.

Ele chegou a ser um dos colaboradores do jornal “Tribuna do Povo”. E com o passar dos anos enveredou por outros meios de comunicação da cidade.

Muitas vezes o Bereci da Rocha Macedo, tomava para si a tarefa de assar o churrasco. Era também um bom assador, embora deixasse a carne quase crua, sangrando, bem do jeito que ele gostava. Mas nem todos tinham vocação para “vampiros”.

Mas não posso esquecer do nosso churrasqueiro mor, o saudoso Zeca, que também sabia preparar como ninguém uma espetacular torta de traíra sem espinho. Bons tempos aqueles. Outro de nossos assadores era o Machado (zelador da praça), já falecido.

Como memória de velho não funciona bem, estou com 76 anos, tive de recorrer ao amigo Bereci Macedo para lembrar os nomes dos assíduos frequentadores dos memoráveis “rega bofes” no Tamika. Se faltou alguém, peço desculpas antecipadas.

A lista é extensa: Lázaro, Murchio, Ceschinni, Bastianello, seu Moraes, Fernandez, Milton Mattos, Roberto Ravazzi, Vanderlei (vovô), Araí, Osvaldo, Pantinha, Porciúncula, Sérgio Brasil, Mirinho, Corálio Laureano, hoje com 89 anos, irmão do saudoso Zoé (torço para que ainda esteja entre nos).

O ritual, invariavelmente era sempre o mesmo. Lá pelas 11 da manhã começavam os preparativos. O pessoal ia chegando devagarinho e as três da tarde todos já tinham almoçado.

A cerveja amiga continuava até as cinco ou seis horas, ao som do violão e voz do Carlos Alberto Moreira. A festança terminava, quase sempre com um discurso do Bereci.

Depois, a noite espichava na cancha de bocha da Associação dos Moradores do bairro, que leva o nome do inesquecível Jaime Vargas dos Santos, o “Geada”, antigo craque da dupla Grenal e que fez parte da turma de pioneiros do churrasco.

Certa ocasião formei uma dupla com o João Manoel, irmão do Bereci, em um torneio de bocha. Eu nunca fui bom nesse esporte, mas também é verdade que nunca me faltou sorte no trato com às bochas.

O esquema era simples, eu as jogava para bem próximo do “bolim” e o João Manoel se encarregava de retirar as dos adversários para bem longe. Uma a uma eliminamos as demais duplas e o prêmio foi uma caixa de cervejas geladíssimas, que esvaziamos em pouco tempo.

Tempo bom que não volta mais. A mercearia fechou faz tempo, o Tamika foi embora, mas o local, com toda certeza, marcou época.

E o Bereci me conta que o amigo comum, Cláudio, mais conhecido por “Cabo Onze” andava peleando valentemente pela sobrevivência. Não sei se conseguiu.

A distância nem sempre nos traz notícias da terra e dos amigos. A última coisa que soube dele, é que estava meio esquecido, se perdia de casa. Eu o conheci quando ainda estava na ativa e frequentava o Bar do Lima, frente o 9º RCB.

O Lima do bar, a exemplo do Bereci, é gremista de quatro costados, o que não inviabiliza nossas amizades. Eu perdoo os dois, afinal de contas ninguém é perfeito.

Certa vez fui pescar com o Tamika e o Zeca. O lugar, já nem lembro mais. Sei que bem à tardinha saímos em direção ao mato, para pegar algumas pitangas. Eu e o Zeca ficamos para trás, pois não tinha como acompanhar o passo do Tamika, que com suas pernas enormes logo se distanciou de nós.

Colhemos as pitangas, mas sofremos muito com os mosquitos que havia na beira do rio. Pelo jeito eles estavam participando de algum congresso internacional, tal a quantidade e a voracidade.

Foi nessa pescaria que aprendi uma forma diferente de cozinhar arroz. O Zeca colocava água aos poucos, e não de uma vez só como é usual. E deu certo, o arroz ficou bem cozido e soltinho.

CEGUEIRA VEIO NA ADOLESCÊNCIA

O nosso querido Carlos Alberto não nasceu cego. Pelo que se sabe a deficiência visual aconteceu de maneira progressiva, quando ainda na adolescência, chegando ao climax quando tinha 24 anos.

Era o filho mais velho do seu Moacir Moreira, que era militar. Quando o conheci já estava na Reserva. Carlos Alberto tinha seis irmãos. Conheci o Pedro, que também residia no Bairro Menino Jesus e é professor. Da Rahyza fiquei sabendo pela Internet.

Carlos Alberto era casado com dona Maria da Anunciação, com quem teve três filhos: André, que é bem sucedido jornalista, trabalhando há vários anos no jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre; Cláudio Moacir, que além de jornalista é pastor evangélico e Carlos Ismael, que é funcionário do Jornal “Zero Hora”.

A propósito, Carlos Ismael foi quem fez o trabalho de editoração dos meus livros “100 anos de futebol em São Gabriel” e “Nico, o Bombardeador”. Trata-se de um excelente profissional.

E com certeza dará toda a sua competência na editoração de meu terceiro livro, “Xavantes de Ouro”, referente ao G.E. Brasil, de Pelotas, ainda sem data para lançamento.

UM POLÍTICO AUTÊNTICO

Como político bem sucedido, Carlos Alberto foi um dos precursores dos direitos dos portadores de deficiências. Bem antes da sociedade moderna preocupar-se com a inclusão social, Carlos Alberto já levantava essa bandeira.

A queda de Carlos Alberto para a política se fez presente na juventude, quando se filiou à “Ala Moça” do antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola.

Em 1974 foi eleito vereador em São Gabriel, pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) alcançando a expressiva soma de mais de 900 votos. Foi no tempo da ditadura militar em que existiam somente dois partidos políticos no país: a Arena, governista e MDB, oposição.

Em 1983, tornou-se o primeiro cego a presidir uma Câmara de Vereadores no Brasil e na América Latina. Carlos Alberto não foi um vereador qualquer. Ele trabalhou intensamente, honrando o mandato e apresentando projetos que beneficiaram pessoas portadoras de deficiência. Também se importou com as gestantes.

E foi um ardoroso combatente contra à corrupção na gestão pública, num tempo em que não se falava muito no tema, como acontece agora. 

Ele e o colega de Legislativo, Luzardo Mello da Silva (PDS), lutaram politicamente para que uma unidade do Corpo de Bombeiros viesse para São Gabriel, o que acabou ocorrendo.

Foi ideia dele o “I Seminário de Estudos dos Problemas de São Gabriel”, promovido pela Câmara de Vereadores, quando foram discutidas medidas que proporcionassem melhorias para às deficiências estruturais que engessavam o desenvolvimento local, tais como os déficits hídrico e energético.

Graças a isso, poucos anos depois os governos estaduais de Simon e Collares, deram início a construção das barragens VAC-1 e VAC-4, o que mudou o desenvolvimento da agricultura no município.

VOLTA ÀS ORIGENS

Em 1992, deixou o PDT, para voltar às origens, filiando-se ao PTB atendendo convite de Arlindo Vargas, que chegou a ser eleito deputado federal, e com quem convivi em Brasília.

Várias vezes almoçamos juntos em um dos restaurantes existentes no Palácio do Planalto. Arlindo foi também Subchefe de Assuntos Federativos da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República.

Carlos Alberto Moreira dava ou ainda dá nome a Sala de Imprensa da Câmara Municipal de São Gabriel, por proposição do falecido vereador Renato Andrade da Silva (PMDB).

No entanto, a família pediu a retirada da honraria tendo em vista que o produtor rural responsável pela morte do jornalista e radialista fora homenageado pelos vereadores por ocasião da entrega de honrarias, quando do aniversário da cidade.

Outro que partiu foi o Luis Pacheco Murqui, funcionário da Aspeme e companheiro de inesquecíveis churrasqueadas no Bar do Tamika, no Bairro Menino Jesus, onde residia.

Formávamos um seleto grupo de amigos, pena que alguns já não estão mais entre nós: o sempre sorridente Zeca, churrasqueiro oficial do bar; o incomparável Carlos Alberto Moreira, que alegrava nossas tardes com seu violão e voz, em improvisos sempre bem humorados e o Luiz Carlos Bastianello, funcionário da Justiça e amigo de todas as horas.

Cada vez que eu abro o “Jornal da Cidade” e leio a coluna de Necrologia sinto um frio no estômago, pela possibilidade do falecimento de alguma pessoa conhecida.

Era tradicional o churrasco dos sábados a tarde, quase sempre preparados por outro amigo que já partiu, o saudoso Zeca, que também foi meu companheiro de inesquecíveis pescarias. Era um cozinheiro de mão cheia. Lembro que ele sabia preparar como ninguém um pastelão de peixe e outras guloseimas.
  
Um verdadeiro “time de craques” participava desses momentos de sadia confraternização e muita cerveja gelada, aproveitando a sombra das frondosas árvores da praça frente o bar. Entre os que marcavam presença sempre, estavam o Luiz Carlos Bastianello, Luiz Porciuncula (Popô), Carlos Alberto Moreira, Murki, Bereci Macedo, Eraldo também de saudosa memória), eu e tantos outros que a memória já gasta pelos 76 anos de idade, não ajuda a lembrar.

Era bom ouvir o violão e os improvisos do Carlos Alberto Moreira, exímio repentista que de forma bem humorada saudava alguns nomes importantes da política local. E não faltavam os comentários inteligentes do Bereci Macedo, que dava verdadeiras aulas de política aos seus atentos ouvintes.

Pena que os bons momentos da vida não se perpetuam. O Bar do Tamika acabou, muitos companheiros faleceram e outros saíram de São Gabriel, meu caso. Ficou apenas a saudade.

Dia desses o Marcel, jovem advogado de nossa cidade, filho do Luiz Carlos Bastianello me mandou por e-mail uma foto em que eu e seu pai estávamos juntos num daqueles memoráveis churrascos. Essa foto está no meu álbum no Orkut e a guardo com muito carinho.

Uma ocasião eu e o meu amigo tenente Dutra, estávamos nas Pontes Brancas pegando lambaris para servirem de iscas, para a pescaria da noite. Eram mais ou menos 6 horas da manhã de um gelado dia de inverno, e nós com água até o pescoço, mas bem aquecidos por generosos goles de “3 Fazendas”.

Foi quando passou em uma camioneta o Luiz Carlos Bastianello, que se dirigia para uma propriedade rural no interior do município. Deve ter pensado com seus botões: “Esses caras não regulam bem”.

Sei que em horas como esta o sentimento de dor fala mais forte que as palavras. Mas da vida temos três certezas, nascer, viver e morrer. É o destino inexorável de todos nós. O que fica é o que fomos. (Texto e pesquisa: Nilo Dias)



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