domingo, 15 de julho de 2018

O maior vate campeiro do Rio Grande do Sul

Eu tinha um livro de poesias do Raul Sotero de Souza intitulado “Desperta Rio Grande”, prosa e verso, que foi publicado em 1962 pela Editora Pallotti, de Santa Maria. Quando de uma exposição de livros de autores de São Gabriel, eu o emprestei ao saudoso amigo Nolan Scipioni, na época secretário municipal de Turismo.

E deve ter ficado lá na Biblioteca Municipal até hoje. E pelo tempo que faz, não vou mais busca-lo, fica como doação ao nosso estabelecimento cultural.

Na verdade eu tinha dúvidas se Raul Sotero de Souza era mesmo filho de São Gabriel. Segundo o pesquisador e historiador rosariense, Jorge Telles de Oliveira, hoje radicado em Santa Maria, ele teria nascido em Lavras do Sul.

Mas como sempre fazia, recorri ao “amigo-amigo” o saudoso historiador Osório Santana Figueiredo, em quem confiava integralmente. E a dúvida foi dissipada. Ele nasceu na Palma, município de São Gabriel, em 4 de março de 1895 e faleceu em Santa Maria, no dia 21 de novembro de 1972, aos 77 anos.

Seu Osório me contou que conheceu pessoalmente o tradicionalista, tendo inclusive revisado um de seus livros. Raul era muito amigo do pai do historiador, o que propiciou uma convivência mais próxima entre eles.

Na ótica de seu Osório, Raul Sotero de Souza foi o maior vate campeiro que conheceu. Era um gaúdério. Não tinha paradeiro. Falavam que ele tinha um filho que, no entanto, o historiador não pode descobrir.

Nem tem certeza se ele foi casado, mas que teve várias mulheres é fato indiscutível. Sabe-se que um advogado de São Borja, de nome Israel está escrevendo a biografia de Raul. Tentei contato com ele mas não consegui.

NÃO TINHA PARADEIRO

Na verdade Raul não costumava parar em um lugar só. Além de poeta era também trovador repentista e gaiteiro, sendo comum vê-lo pelas emissoras de rádio de Santa Maria e cidades vizinhas, como Jaguari, São Vicente, Mata, São Pedro do Sul e outras.

Sei também que Raul escreveu mais um livro, “Inspiração de um gaúcho”, com versos regionalistas e o “ABC sobre pelos de cavalos”, precedido de uma explicação em verso, para o senhor Alfredo Faria:

Senhor Alfredo Faria,/para seu lado vou eu/em busca de um cavalinho/que o senhor me prometeu,/ e pelo tempo que faz/decerto já se esqueceu.

E como promessa é dívida/o senhor tenha paciência;/mas peço me desculpar/eu estar com exigência,/pois dizem que Deus ajuda/a quem faz a diligência.

Assim lhe mando estes versos/para não mais esquecer,/que neles também lhe peço/pensar o que vai fazer./Em prova de gratidão/vou mandar-lhe um ABC.

No ABC que lhe mando,/nas mesmas letras declaro,/em qualquer qüera não ando:/o meu gosto é muito raro./Mas dos pelos que eu explico,/Aceito, creia, meu caro.

Alazão é pelo lindo!/se eu pudesse merecer/por ser a primeira letra/deste mimoso ABC./Baio também me agrada,/se vós quiser me dar./Se não tiver por quem mandar,/eu mesmo vou lá buscar.

Colorado, gosto muito/por ser um pelo decente;/mesmo rosilho prateado/me deixaria contente./Doradilho também serve;/é pelo que já gostei./também num zaino bragado/muita carreira ganhei.

Entrepelado, que lindo/por ser um pelo esquisito;/eu aceitava me rindo/porque sempre achei bonito./Fazendo os versos que mando,/talvez tenha algum engano:/estava agora pensando/que pode ser um tubiano.

Gateado é pelo bem maula,/mas não quero pra carreira;/dá pra defender a pátria,/pra salvação da bandeira.

Há! Que saudade que tenho/do meu rosilho tostado!/De rédea, era uma balança!/Cortava por qualquer lado./Escuro, me dá saudades/do tempo de minha infância:/era o que mais eu zelava,/era o melhor lá da estância.

Já que trato deste assunto,/desejo sair servido:/mesmo azulejo ou bragado,/não tenho o tempo perdido./Cavalo branco é azar,/para os dias de trovoada:/como sou muito devoto,/não tenho má fé de nada.

Lobuno na cancha é maula,/mas no rodeio já presta./Se assim ganhar, me contento:/este consolo me resta./Mouro é sempre garantido/num pelado de rodeio./Também overo rosado/é pelo que não odeio.

No que receba estes versos/feitos de tão boa fé,/deveis lembrar que um gaúcho/é triste viver a pé./Oh! Que saudades que tenho/de um malacara que eu tinha,/das quatro patinhas brancas,/presente de uma madrinha.

Picaço é pelo macaco/de cavalo caborteiro;/mas se ganhar, me contento,/por não me custar dinheiro./Que estes versos vão cair/nas mãos de muito boa gente,/que um pingo dado de gosto/quem ganha fica contente.

Ruano é pelo de gosto/por ele tenho paixão;/para apartar um rodeio/num dia de marcação./Salino é pelo mui raro/que só por sorte da gente;/overo-chita e bragado/se ganho fico contente.

Tordilho no rio é peixe;/tostado é bom mas não tanto;/pampa de todos os pelos/também me serve, garanto.

Uma história bem escrita/a um homem de educação,/dá pra avaliar os poderes/da força da inclinação./Vermelho de campo é um raio;/melado é fraco e traiçoeiro;/mas este mesmo eu aceito/por não me custar dinheiro.

Xará, só mesmo um acaso,/ou por ventura no mundo,/somente o pelo é remisso/que não alisa um segundo./Zaino, vai por despedida,/com ele termino os versos;/que não se esqueça de mim/mais uma vez eu lhe peço.

QUEM ERA ALFREDO FARIA

Pedi socorro ao historiador Osório Santana Figueiredo, sobre quem era o senhor Alfredo Faria. E como sempre, solicito, me informou o seguinte:

Caro Nilo. Conheci. Era um dos mais ricos estancieiros de São Gabriel. Proprietário da “Estância do Céu”, “Estância do Batovi” e “Estancia Santa Delaide”. Foi prefeito nomeado de São Gabriel, em 1936/1937.

Os seus vencimentos de prefeito mandava que depositassem na conta da Santa Casa de Caridade. Tinha dinheiro demais. Era conhecido como o homem que não gostava que cobrassem as dívidas.

Por essa razão o ferreiro Edmundo Vasconcelos, que recebia muito serviço do estancieiro e conhecedor de suas manias, sempre ao ser perguntado quanto lhe era devido, respondia que não era nada.

Depois, mandava-lhe um bilhete pedindo certa importância em dinheiro, quase sempre além dos valores do serviço realizado. O seu Alfredo, sem reclamar, mandava o dinheiro. Era assim que ele gostava.

Certa ocasião o ferreiro Edmundo recebeu de presente do estancieiro uma potranca, mas nunca foi buscá-la. O seu Alfredo cuidou do animal que deu várias crias e formou uma manada, que segundo ele era de propriedade do ferreiro.

Se achando doente, o seu Alfredo viajou para Porto Alegre, mas antes entregou-lhe o seu Jeep, dizendo: “É um presente para ti Edmundo. Vou para Porto Alegre e não volto, meu caso é muito sério”. Era um homem de bom coração, prova disso que os seus capatazes e posteiros das estâncias eram donos de grandes pontas de gado.

Alfredo Faria era sogro de Raul Southall, a quem deixou as estâncias “Do Céu” e “Santa Delaide”, mais a casa na cidade. A do “Batovi”, a maior ficou com a outra filha casada com o coronel Saldanha, do Exército.
                      
Mal o sogro morreu, Raul foi à casa do seu Edmundo e requisitou o Jeep e negou-lhe os cavalos que ele tinha na “Estância do Batovi”, dizendo: “Lá hoste non tiene nadia”.

Seu Edmundo nada reclamou. E a gente que trabalhava para o Alfredo Farias, foi toda posta para a rua. Mas o destino muitas vezes dá o troco: Raul Southal, antes de morrer ficou 10 anos paralítico, sentado numa cadeira de rodas, apenas olhando para a rua.

EM MEMÓRIA DE TALCO CARDOSO

Outros versos de Raul Sotero de Souza que ficaram bastante conhecidos foram feitos em memória de “Talco Cardoso”, famoso bandoleiro de São Gabriel.

Na época em que apareceu essa décima (literatura de cordel), era muito usada no Nordeste. Aqui no Sul era bastante disputada e vendida nos trens de passageiros. A coisa ainda estava meio complicada, estavam muito verdes e marcadas as estrepolias de “Talco” e de seus matreiros.

Raul Sotero também era compositor musical. Teve vários parceiros, entre eles “Cerejinha”, com quem compôs as músicas “Saudade da minha terra” e “Adeus Alegrete”.

Ivory Gomes de Mello, o “Cerejinha” foi músico e radialista gaúcho, chamado de “Cardeal de Ouro”. Além da parceria com Raul Sotero de Souza, foi autor de outras músicas de sucesso como “Briga de Casal” e “Como é Lindo o Meu Rio Grande”, entre outras.

Foi autor de expressões muito usadas, como "Tá na hora do traçudo véio!", sempre que ia comunicar o primeiro prêmio da loteria; "Minha cumadre véia, tchau! Meu cumpadre véio, tchau! Vamo tramelá as porta do ranchinho", cada vez que se despedia no seu programa diário. Sem dúvida foi um verdadeiro ícone da cultura santamariense.

Raul Sotero participou, como trovador repentista, no programa “Grande Rodeio Coringa”, que era levado ao ar nos domingos a noite pela Rádio Farroupilha, de Porto Alegre, apresentado pelos tradicionalistas Darcy Fagundes e Luiz Menezes.

Era o tempo áureo do rádio. Não havia televisão. Acho até que era bem melhor, pois não convivíamos com trastes do tipo “Gugu”, “Ratinho” e “Faustão”, entre outros.

No programa desfilavam muitos excelentes repentistas como Inácio Cardoso, Teréco Oliveira, Genésio Barreto, Luiz Müller, Portela Delavi, Garoto de Ouro, Preto Limão, Teixeirinha e Gildo de Freitas.

Eu lembro que lá em casa, na cidade de Dom Pedrito, onde nasci, meus saudosos pais não deixavam de ouvir o programa. Sentados na sala, ao lado do velho rádio de válvulas, acompanhavam atentamente o desfilar de atrações do tradicionalismo gaúcho.

Darcy Fagundes nasceu em 1925, em Uruguaiana, e era o primogênito de uma família de 11 irmãos, entre eles, o saudoso apresentador Antônio Augusto Fagundes, o “Nico”.

A partir do programa, Darcy ficou conhecido pela alcunha de "o gaúcho vaqueano do rádio", slogan criado por ele mesmo. Apresentou também o programa dominical “Invernada Gaúcha”, na TVE/RS, e “Madrugada Gaúcha”, na Rádio Gaúcha.

Faleceu em 22 de junho de 1984, vitimado pelo câncer, sendo até hoje lembrado como um grande incentivador e cultivador da música e da cultura rio-grandense.

Já Luís Menezes, o parceiro de Darci Fagundes, era filho de Quaraí, onde nasceu em 20 de maio de 1922. Era folclorista, compositor, radialista e cantor e autor de vários clássicos regionalistas gaúchos.

Exerceu suas atividades na Rádio Gaúcha, Rádio Farroupilha e Rádio Difusora. Também apresentou programas de televisão na TV Piratini e TV Bandeirantes.

Em 1954 fez sua festejada canção “Piazito Carreteiro”, que trazia uma nova maneira para interpretar a música regional gauchesca.

TRIO GAÚCHO

Raul Sotero de Souza também fez parte do “Trio Gaúcho”, ao lado de Chiquinho da Vila e Gildo de Freitas. Existem referências a Raul, no livro “Gildo de Freitas” de Juarez Fonseca.

Raul teria ido ao Bairro Niterói, em Canoas, falar com dona Carminha, esposa de Gildo, que há muito não vinha em casa e nem mandava notícias.

E Raul disse a ela que era ele quem mandava dinheiro para o sustento da casa. Quando dos shows do Gildo, ele sempre tirava um pouco e mandava para ela. E ao mesmo tempo avisou que o Gildo fora embora para outro lugar, e não sabia mais notícias dele, e por isso teria de parar com a ajuda.

Leovegildo José de Freitas, ou simplesmente Gildo de Freitas era natural de Porto Alegre, onde nasceu no Bairro Passo da Areia, no dia 19 de junho de 1919. Faleceu também em Porto Alegre, no dia 4 de dezembro de 1982.

Possuía um estilo muito próximo ao do também tradicionalista “Teixeirinha”, com quem, apesar de algumas divergências, por várias vezes fez parcerias e rivalizava em popularidade.

Dia 4 de dezembro que também foi a data da morte de “Teixeirinha” em 1985, foi declarado pela Assembléia legislativa do Rio Grande do Sul, através de projeto aprovado em 1989 de autoria do deputado Joaquim Moncks, como o “Dia do Poeta repentista Gaúcho” e do Artista Regional Gaúcho”.

TROFÉU RAUL SOTERO

No festival de música nativista “1º Flete da Canção Gaúcha”, que é realizado no vizinho município de Santa Margarida do Sul, foi criado, em homenagem ao poeta e trovador, o “Troféu Raul Sotero”, para a modalidade de melhor intérprete de música do festival.

São Gabriel sempre teve grandes trovadores, como o saudoso Adão Brasil dos Santos, o “Canário Alegre”, que era conhecido em todo o Estado.

Também, Marcelino Medeiros Rios, popularmente conhecido como “Lenço Azul”, falecido em julho de 2015. Era policial militar aposentado e funcionário do Forum e conhecido na arte da trova, através do auge dos programas de auditório, com destaques para o “Rodeio Coringa”, na Rádio Farroupilha, de Porto Alegre e “Inverno no Galpão”, na Rádio São Gabriel.

Lembro que ele morava na Vila Maria e sua casa era um verdadeiro “Museu da Tradição”, tantos os objetos gauchescos que colecionava.

E mais recentemente José Macedo, o “Macedinho”, cantor, trovador, gaiteiro e compositor. Sei que tivemos e ainda temos trovadores da melhor estirpe, que não os cito por lapsos de memória ou por não conhecê-los, pois já faz muito tempo que sai de São Gabriel. Mas homenageio a todos. (Pesquisa: Nilo Dias - Matéria publicada no jornal "O Fato", de São Gabriel, edição de 11 de julho de 2018))


Um comentário:

  1. Tem algo mais de Inácio Cardoso gaiteiro trovador estou tentando resgatar as memórias dele e dar o lugar que ele merece pois vejo falar muito pouco dele só em algumas linhas na reportagem de um outro artista da época.acho que ele foi muito importante para nossa cultura gaúcha.meu nome é Inácio Cardoso sobrinho do trovador gaiteiro ignacio cardoso

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