quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Sezefredo, o que jogou mais que Pelé

Foi lançado recentemente em Pelotas o livro "Mais perfeito que o paraíso", com crônicas dos jornalistas Airton Centeno, Luiz Lanzetta, Lourenço Cazarré, Patricia Lima, Geraldo Hasse, Sérgio Siqueira, Klécio Santos e este vosso amigo Nilo Dias. Abaixo o trabalho que escrevi e faz parte da obra.

Sezefredo, o que jogou mais que "Pelé"

Por que esta cara? Não acreditam? Sim, Sezefredo, no falar e apreciar de muitos, jogou mais que o Edson. Outros, um tanto contidos, que viram os dois dentro das quatro linhas, palpitam que se igualavam no trato com o esférico. 

Terceiros, acham que não dá para comparar. As épocas eram diferentes, o futebol, outro, os estilos diversos, as exigências aos atletas nem de longe se pareciam, não existia TV, a mídia esportiva engatinhava etc e tal. E o profissionalismo ainda não adentrara por inteiro na profissão de correr atrás da redonda. Um quarto contingente, o maior de todos e, portanto, hegemônico, está ouvindo falar aqui pela primeira vez da existência de Sezefredo, gênio do rude esporte bretão.

Claro que o Edson dirá que ninguém nunca jogou tanto quanto o Pelé. É o que ele diz sempre e seguirá dizendo. Mas quem viu Sezefredo, lado a lado ou das arquibancadas, desmanchou-se em elogios. 

Querem um exemplo? Então, vamos chamar Osvaldo Brandão. Não sabem quem é? Gaúcho – mas esta é sua menor virtude –, o meia-direita viu de perto o futebol de Sezefredo. Brandão vestiu as camisetas do Inter e do Palmeiras, dirigiu oito equipes de ponta do futebol brasileiro e sul-americano e, por três vezes, a seleção canarinho. Fala, Brandão:

- Jogava o fino do jogo, sabia passar, fintar, arrematar (com os dois pés) e cabecear. Foi pena que tivesse uma carreira tão curta, acabando da maneira como acabou. Mas não há dúvida que foi um dos maiores do Brasil.

Foi o que Brandão declarou ao Mundo Esportivo, no remoto ano de 1955. Arrebatado, o editor do jornal sapecou a manchete em oito colunas, de ponta a ponta da página, onde informava que Sezefredo “acabou cedo mas foi o maior do Brasil”.

No testemunho do publicitário Ronoel Castro da Silva, seu pai, Adão Castro da Silva, ex-jogador do Pelotas e da seleção gaúcha de 1947, afirmava que Sezefredo fora o melhor jogador que vira atuar. Solferino Enderle, que jogou pelo Grêmio Esportivo Brasil nos anos 1940, tinha Sezefredo em melhor conta do que o famoso craque de fama mundial. Mas tem mais.

O cronista Mário Filho, que daria nome ao estádio do Maracanã, também lhe rasgou elogios. Aliás, Sezefredo defendeu o Fluminense, clube do coração do irmão do cronista, o dramaturgo Nélson Rodrigues. Sobre nosso personagem, Mário Filho declarou que “era difícil encontrar um centroavante com tantos recursos, com tanta inteligência”. Achava que “tinha tudo para ser um rei da posição, não fossem os problemas físicos e de saúde”.

Aqui, aparecem os problemas de saúde de Sezefredo. Vamos deixa-los para o final. Antes, mais duas opiniões. Primeiro a do uruguaio Luis Ernesto Castro. Ele refulgiu na lendária linha de frente do Nacional, de Montevidéu, formada pelo quinteto Castro, Garcia, Ciocca, Porta e Zapirain. 

Era a virada dos anos 30 para os 40, quando Sezefredo, em fim de carreira, também passara por lá. Castro afirmou ter tido “a sorte” de ver Sezefredo jogar. “Se esse homem tivesse vindo dez anos antes de quando veio, velho e doente, teria sido um professor de futebol, dando aulas”.  E apareceu a doença de novo. Voltaremos a ela no fim, como convém, que é quando tudo acaba mesmo.

O segundo pitaco é o do torcedor.  Xavante de quatro costados, José Lanzetta viu Sezefredo jogando e fazendo jogar.  Era o tempo em que o craque defendeu as cores do Regimento, clube do bairro Fragata.  Quando Sócrates surgiu na década de 1970, Lanzetta comentou que era o perfil de jogador mais próximo a Sezefredo que jamais vira.

Sezefredo Ernesto da Costa nasceu no interior de Santa Vitória do Palmar em 7 de novembro de 1912. Foi para a cidade estudar e perseguir bolas de pano nas ruas. Mais taludo, foi chamado pelos clubes da terra, o Santa Cruz e o Brasil.

Na idade de prestar serviço militar foi para Pelotas. Lá descobriu um conterrâneo e amigo, Nestor Corbiniano de Andrade, que também gostava do esporte.  Foi ele quem o levou para o Regimento, o verde amarelo pelotense – mais tarde, mudaria de nome para Grêmio Atlético Farroupilha. E acrescentaria mais uma cor, a vermelha, ao fardamento. 

O ano mais glorioso do Farroupilha/Regimento foi 1935 e teve Sezefredo como estrela. Passou por cima de todos os adversários e chegou a Porto Alegre para disputar as finais do Estadual. Topou com o Grêmio em uma série de "melhor de três". 

No primeiro jogo deu Grêmio, 3X1. No segundo, em Pelotas, a desforra, com um incontestável 3X0. Na decisão, disputada novamente na capital, Sezefredo balançou as redes no primeiro minuto.  Russinho empatou aos 37, mas Cerrito fez o gol da conquista aos 63.

No retorno a bordo do navio Itassucê, uma multidão invadiu o porto de Pelotas para esperar os campeões. Foi o primeiro grande troféu de Sezefredo.

No ano seguinte, participou de nova façanha: o primeiro triunfo dos gaúchos sobre os paulistas na história do campeonato brasileiro de seleções. Após empate em 1x1 no tempo normal, a vitória veio com gol dele na prorrogação. Seu toque, iludindo o goleiro Jurandir, foi cantado em prosa e verso. Os versos ficaram por conta de um torcedor, Carlos Alberto Zubarán, extasiado com a cena:

Na figueira legionária
Onde fácil é subir
Cardeal ensaiou uma ária
Para encantar Jurandir

Jurandir foi para um canto
A bola foi para o outro lado
Cardeal talvez por encanto
Deixou o goleiro sentado

Do Fragata e sem escalas, foi diretamente para a Seleção Brasileira, convocado pelo técnico Ademar Pimenta. Disputou o Sul-Americano de 1937, comandando o ataque do selecionado. Foi vice-campeão. Assediado por vários clubes, assinou com o Nacional, do Uruguai. Em 1938, teve o passe adquirido pelo Fluminense.

“O novo comandante da ofensiva tricolor apresentou-se em excelentes condições físicas", atestou em 13 de abril daquele ano o jornal Correio Paulistano.

Seu destino estava traçado: a Copa do Mundo de 1938, na França. Convocado pela Confederação Brasileira de Desportos (CBD), foi barrado pelos médicos. Estava doente. Carregava uma tuberculose.

Era um boêmio inveterado. Gostava de jogatina. Varava as noites diante do pano verde.  Talvez isso tenha sido a causa maior para adquirir o mal do século, que o levaria à morte. Como se não bastasse, também padeceu das consequências de um joelho arrebentado pela fome das chuteiras rivais.

Mas Sezefredo Ernesto da Costa, o Cardeal, ainda assim jogava. O apelido veio com o visual: a boina vermelha ou a rede de cabeça da mesma cor, que costumava usar em campo.

Retornou ao Farroupilha em 1940, onde participou de mais três temporadas. Dizem os antigos que, para iludir a marcação da tísica, atuava parado, nas imediações da meia lua da área inimiga. Ali, aguardava uma bola espirrada da defesa ou o passe do meia. E quando a bola chegava aos seus pés, nem a doença, nem os adversários conseguiam tirá-la. Por um instante, era o Cardeal de sempre. E o goleiro logo seria oficialmente informado sobre esta verdade.

Foi assim até 1943, quando o Farroupilha conquistou mais um campeonato citadino. Depois, a bola foi se distanciando e a tuberculose se acercou ainda mais.    

Seu estado já era terminal quando o Nacional veio buscá-lo. Levou-o para Montevidéu, bancou-lhe a assistência, pagou suas despesas.  A capital uruguaia, então, era um centro avançado de combate à doença no continente. Mas de pouco adiantou. O mal já se incrustara nos pulmões. Era tarde demais.

Morreu em 4 de agosto de 1949. Tinha 37 anos. Hoje é nome de ginásio de esportes na sua cidade.
Nunca saberemos se foi melhor, igual ou inferior a Pelé. Pela soma de gols, triunfos, títulos e troféus, não há duvida que ninguém  ombreia com o campeão de três copas mundiais. Neste ou no século passado. 

Mas para o futebol, esporte associativo, é sempre problemático dizer que a vitória é apenas daquele jogador. Ou que o fracasso também é responsabilidade de um só indivíduo. Quem viu os dois não está mais aqui para depor. Nem mesmo Pelé poderia julgar com conhecimento de causa. Quando Cardeal encerrou sua carreira, o filho de Dondinho e Celeste tinha três anos e ainda balbuciava em Três Corações.

Sezefredo se foi mas ficou a lenda Cardeal. Nela, afirma-se que possuía apenas um dos pulmões. O que daria um conteúdo de dramaticidade e de extraordinária bravura à trajetória do guri que corria atrás de bolas de pano no Sul do Sul do Brasil. 

Afinal, como o cinema nos ensinou – obrigado, John Ford – quando a lenda se torna realidade, publica-se a lenda. E as lendas, todos sabemos, são melhores. Cardeal não foge à regra. E aí está sua lenda, plena de verdades. (Por Nilo Dias)



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