sábado, 4 de março de 2017

“Gaitinha” um tradicionalista autêntico

Luiz Carlos Azambuja o “Gaitinha” é figura das mais populares de São Gabriel. Talvez seja um dos últimos tradicionalistas autênticos que existem na cidade. Acho que ninguém até hoje viu o “Gaitinha” sem que estivesse devidamente pilchado, com botas, bombachas, poncho ou pala, chapéu de aba larga e lenço no pescoço.

E sua coleção é grande. Tem vestimentas de tudo que é cor, claro com predominância para o vermelho, verde e amarelo, que simbolizam a bandeira do Rio Grande do Sul.

“Gaitinha” não é filho de São Gabriel. É natural de Rio Pardo, onde nasceu em 16 de novembro de 1943. Veio para São Gabriel quando tinha apenas 11 meses de idade.

Nada indica que ele tenha qualquer preferência política do passado riograndense, das brigas entre “maragatos” e “pica-paus”, pois usa lenço vermelho ou branco, tanto faz, cores dos velhos partidos adversários no Rio Grande do Sul.

A história conta que as batalhas costumam ter começo e fim. No caso da Revolução Federalista, que ocorreu de 1893 a 1895, não é bem assim. Mesmo já passados quase 120 anos, a impressão que se tem é de que a rivalidade entre “maragatos”, soldados rebeldes e “pica-paus”, militares legalistas ainda não acabou.

A briga secular continua alimentada pela tradição oral, histórias passadas de pai para filho e não morre porque netos e bisnetos recontam os fatos.

Essa rivalidade lembra muito a de Grêmio e Internacional. O vermelho foi a marca registrada dos “maragatos”. A branca, dos “pica-paus”. O azul gremista esteve longe das batalhas de antigamente, mas ganhou força esportiva com o tempo.

Até recordo de um acontecimento ocorrido na minha terra natal, Dom Pedrito, que a exemplo de São Gabriel é local onde as disputas políticas são sempre acirradas.

Não lembro mais o ano em que isso ocorreu, sei que foi na década de 50 quando ainda havia o Partido Libertador, herança dos velhos “maragatos”. E num comício do PTB de Getúlio Vargas, adversário dos “colorados” no Rio Grande do Sul, alguém jogou no meio da multidão um cachorro com um lenço vermelho, no pescoço.

O coitado do animal, que nada tinha a ver com política, foi morto a tiros de revólver, enquanto o animador do comício gritava em alto e bom som: “Matamos um cachorro maragato”, para delírio do povo.

Mas o nosso amigo “Gaitinha” não deve se importar muito com esses acontecimentos históricos. Está mais ligado às tradições gaúchas e nesse item “Maragatos” e “Pica-Paus” se equivalem.

CHAPÉU DE BOIADEIRO

Certa vez quis agradar o amigo “Gaitinha”, levando para ele de presente um chapéu desses de boiadeiro, marca registrada dos cantores sertanejos do Centro-Oeste do Brasil. Educadamente, ele aceitou, mas levou para sua casa e nunca usou, pelo menos nas suas andanças pelas ruas da cidade.

Ele disse, acho que apenas por desculpa, que usava o chapéu quando estava em casa. Mas a razão correta, com certeza, é que usando um chapéu tipo cowboy, estaria desvirtuando a sua condição de gaúcho autêntico. E ninguém duvida disso.

Fiz um esforço danado para carregar aquele chapéu dentro de uma mala de viagem, sem amassá-lo. Respeito a decisão de “Gaitinha” em não querer ser confundido com algum cantor sertanejo.

De minha parte, não tenho nenhum constrangimento em usar esses chapéus do “Cerrado”. Comprei vários, de palha e de feltro. E uso com a mesma alegria de um autêntico chapéu gaúcho, que adquiri na “Selaria do Gringo”, em São Gabriel.

Esse chapéu faz sucesso nos bares que frequento, pois dificilmente se vê deles em Brasília. Muitas “gurias” e “guris” daqui o pedem emprestado para tirar fotografias com ele.

Nos fins de semana é comum aqui por Brasília o pessoal colocar roupas velhas e chapéus amassados, para os encontros etílicos nos bares da cidade. A Teresinha, minha mulher e filha de São Gabriel, costuma dizer nessas ocasiões que estou “fantasiado”.

No tempo em que eu apresentava o programa tradicionalista “Invernada Gaúcha”, na Rádio Batovi, que ia ao ar nos domingos de manhã, às 10 horas, “Gaitinha” era sempre convidado especial. E dava show tocando ao mesmo tempo a sua inseparável gaita de boca e um pandeiro, e ainda conseguia cantar. Uma proeza e tanto.

Volta e meia por lá também aparecia o “Nico”, um ferroviário aposentado, que foi meu vizinho nos tempos que morei em São Gabriel, e que tocava gaita de 8 baixos. Ele na rua Rivera, e eu na Francisco Hermenegildo. E também o Ronoel Rodrigues Vieira, conhecido mecânico que era mestre no cavaquinho.

Nico, Ronoel e “Gaitinha” de repente formavam um trio, ocupando quase todo o tempo do programa. Mas o que importava é que os ouvintes gostavam e telefonavam para dizer isso. Os amigos de “Nico” e Ronoel, por gozação, diziam que eles formavam a dupla “Nojento” e “Que Nojo”.

Eu, o Ronoel e o Nico também jogávamos no time do Ferroviário, que tinha um campo ao lado da rua Rivera. Todos os domingos de manhã havia jogo. Dos adversários lembro os Veteranos do Nacional, onde também joguei, e Supermercado OK.

Sempre juntava muita gente naqueles jogos. A sombra era garantida por frondosas árvores. Havia uma “copa” que vendia cerveja gelada e generosas doses de cachaça. Não lembro que houvesse brigas por lá.

FREQUENTADOR ASSÍDUO DE BARES

“Gaitinha”, além de ganhar algum dinheiro com suas apresentações artísticas em CTGs ou festas de amigos, também entrega o jornal “O Imparcial”, para assinantes. E é um verdadeiro “Caxias” na tarefa. Pedir para ele um jornal de presente é perda de tempo, pois garante que sempre leva o número exato para ser distribuído.

Quando morava em São Gabriel, sempre encontrava o “Gaitinha” nos bares que frequentava, e que na maioria eram os mesmos que ele: “Bar Du Caio”, na esquina da Santa Casa; “Bar Du Caio”, ao lado da Rádio Batovi; “Bar Pilequinho, do Flavinho, na rua Mauricio Cardoso com Maria Barros Salgado; “Bar do Lima”, antes na Tristão Pinto, agora na Mascarenhas de Moraes e “Bar A Toca”, do Marciano Bastos, frente à Prefeitura e tantos outros.

É claro que “Gaitinha” levava uma grande vantagem nesse quesito, pois também era cliente de carteirinha de casas comerciais no interior do município. Certa vez ao voltar de uma pescaria, junto dos amigos tenente Dutra e Flávio, irmão do Zé Lucca, encontramos o “Gaitinha” dando show e derrubando umas que outras no Bar da Lagoa, no Batovi.

Semanalmente ele participa de programas tradicionalistas na Rádio Batovi, levados ao ar desde o “Galpão Canário Alegre”, sob a direção de Gilberto Mello. E aos sábados a tarde com o José Boaventura Félix. E ainda em programas na Rádio São Gabriel, e creio que nas FMs da cidade.

BAILÃO DO MARAGATO

Eu não lembro quando e onde conheci “Gaitinha”. E não tenho certeza se ele frequentava, ou não, o antigo “Bailão do Maragato”, que ficava ao lado da Rádio São Gabriel. Sei que foi do Sérgio Mércio e depois do “Nica”, que diziam, “quieto ninguém fica”.

Recordo que depois do fechamento do “Maragato”, por insistência dos moradores da Mascarenhas de Morais, que não aguentavam os problemas verificados na rua, brigas e outras “cositas” más, o “Nica”, foi para mais adiante, creio que no prédio do Circulo Operário, ou ao lado, onde não durou muito tempo.

Local polêmico, ou não, a verdade é que o “Maragato” marcou história na noite gabrielense. Era conhecido por outras querências. Certa vez o Rio-Grandense, de Rio Grande veio jogar com a S.E.R. São Gabriel e o meu saudoso amigo e compadre, Bento Peixoto Castelã, que era técnico do time “papa-areia”, quis conhecer o famoso bailão.

E lá estivemos. Casa lotada, boa música e a presença feminina em grande número. Bebemos umas cervejas, ensaiamos umas danças e fomos embora quase ao amanhecer. E tudo correu na maior tranquilidade.

Bochincho grosso lá dentro, pelo que sei só aconteceu uma vez, em que o filho de um conhecido comerciante “patrício” da cidade descarregou o revólver, dando tiros no meio do salão. A sorte é que não acertou em ninguém.

PROBLEMAS DE SAÚDE

“Gaitinha”, em março de 2011 andou enfrentando alguns problemas de saúde. Teve trombose em uma das pernas e precisou ser hospitalizado na Santa Casa por alguns dias.

Nesses momentos é que se sabe quem é amigo de verdade. Por justiça conto isto: o “Braguinha”, outro grande divulgador das coisas do Rio Grande do Sul foi um verdadeiro anjo da guarda, que deu toda a assistência ao nosso gaiteiro, que não tem familiares em São Gabriel.

E trombose é coisa séria. Sei disso, pois já enfrentei o problema em duas oportunidades. Se não fizer o tratamento correto, a pessoa corre o risco de ir pro “beleléu”. Hoje, sou obrigado a tomar o remédio “Varfarina”, 2,5 miligramas pelo resto da vida.

E assim mesmo, volta e meia sinto dores nas pernas. E isso causa muito medo. Não descuido de tomar o medicamente diariamente. E também “Metformina” 850 miligramas, contra a diabetes e “Losartana Potássica”, 50 miligramas, para combater a hipertensão. O que não impede que consuma outros “medicamentos” não receitados por médicos, como a cervejinha gelada.

E também não refugo uma boa pinga, especialmente daquelas misturadas com algumas ervas medicinais tipo “carqueja”, “losna”, “guaco” e naturalmente o nosso tão apreciado “butiá”.

ALVO DE BANDIDOS

Bandido tem para tudo que é lado. E não distingue suas vítimas. Não quer saber se o sujeito é rico ou pobre, branco ou preto. Nem o nosso querido “Gaitinha”, figura popularíssima, que não faz mal a ninguém, escapou dessa violência que atinge todas as cidades, sejam grandes, médias ou pequenas.

Em março de 2015, quando ele caminhava, como sempre faz, pelas ruas da cidade, foi atacado por malfeitores que carregaram a sua mala de garupa, onde guarda documentos, dinheiro e a gaita de boca.

Com a surpresa do inesperado ataque, “Gaitinha” sofreu um mal súbito. Por sorte algumas pessoas que passavam pelo local e a tudo assistiram, o socorreram e os agressores fugiram em disparada. Levado ao hospital se recuperou em seguida. O acontecido revoltou boa parte da comunidade, que gosta e admira o destacado tradicionalista.

A partir dai tomou o cuidado de não andar sozinho pelas ruas da cidade tarde da noite. Quando faz alguma apresentação noturna, sempre pede a alguém que o leve até sua casa. E como é querido por todos, sempre encontra alguém que o ajude.

São Gabriel não é nenhuma metrópole, mas já convive com a violência, hoje presente em qualquer lugar. A cidade ainda não se recuperou do recente brutal assassinato de um PM, no Posto Batovi, que virou lugar de concentração de gente de toda a espécie.

Pelo que sei, nem o centro da cidade escapa. Seguidamente acontecem brigas generalizadas frente a um clube social, promovidas por elementos ligados a facções conhecidas por “bondes”.

TORCEDOR DO INTERNACIONAL

Nunca vi “Gaitinha” entrar no estádio Sílvio de Faria Corrêa para torcer pelo time da cidade. Mas sei que ele é torcedor do Internacional, de Porto Alegre. Embora não saiba dizer a escalação do time ou o nome de qualquer atleta, sempre se declarou torcedor do “Colorado”.

Até penso em lhe presentear com uma camisa do Internacional, com o nome “Gaitinha” gravado às costas. Tenho certeza que ele vai gostar e vestir. Não vai fazer o mesmo que o chapéu goiano. Acho que é colorado por influência do amigo comum, “Seco” Assis Brasil.

Cada vez que falo de torcedores colorados em São Gabriel, não posso esquecer o saudoso Adão (não sei o sobrenome), carroceiro que trabalhava para lojas de móveis da cidade, especialmente a Colombo. Toda a vez que passava no “Bar Pilequinho”, parava a carroça e beijava o escudo do Internacional, na camisa que orgulhosamente sempre vestia.

Quem não gostava nada disso era o Caio, meu amigo que na época trabalhava na Colombo e é gremista de quatro costados. Mas essa é outra história.

No “Bar Du Caio” (agora não é mais), perto da Santa Casa é sempre possível assistir na TV os jogos do Campeonato Brasileiro, especialmente do Internacional. E muitas vezes vi “Gaitinha” por lá, sentado pertinho do amigo Luiz Eduardo Assis Brasil, o “Seco”, colorado de primeira linha, igual aos irmãos Luiz Marengo e Caio Rangel.

NO LIVRO AMENIDADES 7

Frequentador assíduo do bar é o amigo doutor João Alfredo Reverbel Bento Pereira, mas sem coragem de assistir por lá os jogos do seu Grêmio, porque é lugar comum só se ver “colorados” ocupando mesas e cadeiras.

Mas ele não poderia deixar de falar algo sobre “Gaitinha”. Essa descrição do nosso estimado herói está no livro “Amenidades 7”, leitura obrigatória. E o amigão João Alfredo escreveu essa passagem, em crônica publicada no dia 16 de abril de 2014.

Contou ele que “num domingo, no bar "Du" Caio, estava a parceria toda reunida e em ebulição, quando chegou o “Gaitinha” e, como estava fresquinho, quase frio, desencavou um sobretudo do fundo do baú, além da camiseta, do moletom, da camisa, do colete, do casaco, do pala e do indefectível chapéu de aba larga, com uma fita do “Sentinela do Forte”.

Como se não bastasse tudo isso, uma cruz missioneira balançava no peito. Era uma figura assustadora. Atracou-se numa branquinha, misturada com catuaba, além de um pacotinho de amendoim. Apesar da vestimenta e da mastigação, é bom ouvinte. Participativo, riu bastante, sem perder o ar de bonomia, sempre mastigando.

Sou observador e, enquanto sorvia a minha “Kaiser Radler”, de baixíssimo teor alcoólico, pensei no grande Liberato Vieira da Cunha, que disse: "Você captura o efêmero, na ingênua tentativa de emprestar-lhe um levíssimo traço do infinito".

Como já estava passando da uma hora da tarde, levantei, fiz a despedida, paguei a conta e tomei o rumo de casa, com o domingo ganho.

MÚSICA SERTANEJA

Certa vez estava no “Bar Du Caio”, ao lado da Rádio Batovi. E por lá se encontravam várias pessoas que iam participar de um programa tradicionalista no “Galpão Canário Alegre”, na simpática emissora onde tive a honra de trabalhar.

E o pessoal aproveitava o espaço de tempo que ainda restava, para dar uma “amaciada” na garganta. E o que se viu foi de arrepiar: dois moços, devidamente pilchados, de botas, bombachas, tirador, chapéu quebrado na cabeça e lenço no pescoço, cantando músicas sertanejas.

Só “Gaitinha” se manteve fiel as nossas tradições. Pegou sua gaitinha de boca e o pandeiro, e salvou a noite. Eu o cumprimentei por isso, sob os olhares desconfiados dos “pseudos” gaúchos presentes.

E não foi só no “Du Caio” que aconteceu isso. Em muitos bares e lojas comerciais de São Gabriel se houve a todo volume músicas sertanejas. Nos carros de som pelas ruas, também. Até no “Galeto do Brito”, meu grande amigo, certa vez um enorme telão mostrava “Bruno e Marrone”. Quase perdi a vontade de almoçar.

Aqui fora ninguém quer saber da música tradicionalista do Rio Grande do Sul. Eu sou testemunha disso. Muitas vezes nos bares que freqüento em Brasília tentei colocar CDs gaúchos e a bronca foi geral.

Teixeirinha e Berenice Azambuja ainda toleram, e assim mesmo raramente. Então, não vejo razão para darmos atenção a coisas que nada tem a ver com a gente.

E às nossas rádios também tem culpa no cartório, pois até apresentam programas tipo campo e sertão. Com isso acabam incentivando o gosto por um tipo de música, que deveria ser chamada de “sertanojo”.

Os nossos CTGs, que poderiam fazer campanhas contra essa invasão musical, também não são mais como antigamente. Prova disso são os rodeios, que já viraram cópias de Barretos (SP), até com locutores gritando a todo o pulmão: “Segura peão”. Assim, parece que a coisa não tem jeito mesmo. (Por Nilo Dias - Publicado no jornal "O Fato", de São Gabriel (RS), edição de 24 de fevereiro de 2017)


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