Luiz Carlos Azambuja o “Gaitinha” é figura das mais populares de
São Gabriel. Talvez seja um dos últimos tradicionalistas autênticos que existem
na cidade. Acho que ninguém até hoje viu o “Gaitinha” sem que estivesse
devidamente pilchado, com botas, bombachas, poncho ou pala, chapéu de aba larga
e lenço no pescoço.
E sua coleção é grande. Tem vestimentas de tudo que é cor, claro
com predominância para o vermelho, verde e amarelo, que simbolizam a bandeira
do Rio Grande do Sul.
“Gaitinha” não é filho de São Gabriel. É natural de Rio Pardo,
onde nasceu em 16 de novembro de 1943. Veio para São Gabriel quando tinha apenas
11 meses de idade.
Nada indica que ele tenha qualquer preferência política do passado
riograndense, das brigas entre “maragatos” e “pica-paus”, pois usa lenço
vermelho ou branco, tanto faz, cores dos velhos partidos adversários no Rio
Grande do Sul.
A história conta que as batalhas costumam ter começo e fim. No
caso da Revolução Federalista, que ocorreu de 1893 a 1895, não é bem assim.
Mesmo já passados quase 120 anos, a impressão que se tem é de que a rivalidade
entre “maragatos”, soldados rebeldes e “pica-paus”, militares legalistas ainda
não acabou.
A briga secular continua alimentada pela tradição oral, histórias
passadas de pai para filho e não morre porque netos e bisnetos recontam os
fatos.
Essa rivalidade lembra muito a de Grêmio e Internacional. O
vermelho foi a marca registrada dos “maragatos”. A branca, dos “pica-paus”. O
azul gremista esteve longe das batalhas de antigamente, mas ganhou força esportiva
com o tempo.
Até recordo de um acontecimento ocorrido na minha terra natal, Dom
Pedrito, que a exemplo de São Gabriel é local onde as disputas políticas são
sempre acirradas.
Não lembro mais o ano em que isso ocorreu, sei que foi na década
de 50 quando ainda havia o Partido Libertador, herança dos velhos “maragatos”.
E num comício do PTB de Getúlio Vargas, adversário dos “colorados” no Rio
Grande do Sul, alguém jogou no meio da multidão um cachorro com um lenço
vermelho, no pescoço.
O coitado do animal, que nada tinha a ver com política, foi morto
a tiros de revólver, enquanto o animador do comício gritava em alto e bom som:
“Matamos um cachorro maragato”, para delírio do povo.
Mas o nosso amigo “Gaitinha” não deve se importar muito com esses
acontecimentos históricos. Está mais ligado às tradições gaúchas e nesse item “Maragatos”
e “Pica-Paus” se equivalem.
CHAPÉU DE BOIADEIRO
Certa vez quis agradar o amigo “Gaitinha”, levando para ele de
presente um chapéu desses de boiadeiro, marca registrada dos cantores
sertanejos do Centro-Oeste do Brasil. Educadamente, ele aceitou, mas levou para
sua casa e nunca usou, pelo menos nas suas andanças pelas ruas da cidade.
Ele disse, acho que apenas por desculpa, que usava o chapéu quando
estava em casa. Mas a razão correta, com certeza, é que usando um chapéu tipo
cowboy, estaria desvirtuando a sua condição de gaúcho autêntico. E ninguém
duvida disso.
Fiz um esforço danado para carregar aquele chapéu dentro de uma
mala de viagem, sem amassá-lo. Respeito a decisão de “Gaitinha” em não querer
ser confundido com algum cantor sertanejo.
De minha parte, não tenho nenhum constrangimento em usar esses
chapéus do “Cerrado”. Comprei vários, de palha e de feltro. E uso com a mesma
alegria de um autêntico chapéu gaúcho, que adquiri na “Selaria do Gringo”, em
São Gabriel.
Esse chapéu faz sucesso nos bares que frequento, pois dificilmente
se vê deles em Brasília. Muitas “gurias” e “guris” daqui o pedem emprestado
para tirar fotografias com ele.
Nos fins de semana é comum aqui por Brasília o pessoal colocar
roupas velhas e chapéus amassados, para os encontros etílicos nos bares da
cidade. A Teresinha, minha mulher e filha de São Gabriel, costuma dizer nessas
ocasiões que estou “fantasiado”.
No tempo em que eu apresentava o programa tradicionalista
“Invernada Gaúcha”, na Rádio Batovi, que ia ao ar nos domingos de manhã, às 10
horas, “Gaitinha” era sempre convidado especial. E dava show tocando ao mesmo
tempo a sua inseparável gaita de boca e um pandeiro, e ainda conseguia cantar.
Uma proeza e tanto.
Volta e meia por lá também aparecia o “Nico”, um ferroviário
aposentado, que foi meu vizinho nos tempos que morei em São Gabriel, e que
tocava gaita de 8 baixos. Ele na rua Rivera, e eu na Francisco Hermenegildo. E
também o Ronoel Rodrigues Vieira, conhecido mecânico que era mestre no
cavaquinho.
Nico, Ronoel e “Gaitinha” de repente formavam um trio, ocupando
quase todo o tempo do programa. Mas o que importava é que os ouvintes gostavam
e telefonavam para dizer isso. Os amigos de “Nico” e Ronoel, por gozação, diziam
que eles formavam a dupla “Nojento” e “Que Nojo”.
Eu, o Ronoel e o Nico também jogávamos no time do Ferroviário, que
tinha um campo ao lado da rua Rivera. Todos os domingos de manhã havia jogo. Dos
adversários lembro os Veteranos do Nacional, onde também joguei, e Supermercado
OK.
Sempre juntava muita gente naqueles jogos. A sombra era garantida
por frondosas árvores. Havia uma “copa” que vendia cerveja gelada e generosas doses
de cachaça. Não lembro que houvesse brigas por lá.
FREQUENTADOR ASSÍDUO DE BARES
“Gaitinha”, além de ganhar algum dinheiro com suas apresentações
artísticas em CTGs ou festas de amigos, também entrega o jornal “O Imparcial”,
para assinantes. E é um verdadeiro “Caxias” na tarefa. Pedir para ele um jornal
de presente é perda de tempo, pois garante que sempre leva o número exato para
ser distribuído.
Quando morava em São Gabriel, sempre encontrava o “Gaitinha” nos
bares que frequentava, e que na maioria eram os mesmos que ele: “Bar Du Caio”,
na esquina da Santa Casa; “Bar Du Caio”, ao lado da Rádio Batovi; “Bar
Pilequinho, do Flavinho, na rua Mauricio Cardoso com Maria Barros Salgado; “Bar
do Lima”, antes na Tristão Pinto, agora na Mascarenhas de Moraes e “Bar A
Toca”, do Marciano Bastos, frente à Prefeitura e tantos outros.
É claro que “Gaitinha” levava uma grande vantagem nesse quesito,
pois também era cliente de carteirinha de casas comerciais no interior do
município. Certa vez ao voltar de uma pescaria, junto dos amigos tenente Dutra
e Flávio, irmão do Zé Lucca, encontramos o “Gaitinha” dando show e derrubando
umas que outras no Bar da Lagoa, no Batovi.
Semanalmente ele participa de programas tradicionalistas na Rádio
Batovi, levados ao ar desde o “Galpão Canário Alegre”, sob a direção de
Gilberto Mello. E aos sábados a tarde com o José Boaventura Félix. E ainda em
programas na Rádio São Gabriel, e creio que nas FMs da cidade.
BAILÃO DO MARAGATO
Eu não lembro quando e onde conheci “Gaitinha”. E não tenho
certeza se ele frequentava, ou não, o antigo “Bailão do Maragato”, que ficava
ao lado da Rádio São Gabriel. Sei que foi do Sérgio Mércio e depois do “Nica”,
que diziam, “quieto ninguém fica”.
Recordo que depois do fechamento do “Maragato”, por insistência
dos moradores da Mascarenhas de Morais, que não aguentavam os problemas verificados
na rua, brigas e outras “cositas” más, o “Nica”, foi para mais adiante, creio
que no prédio do Circulo Operário, ou ao lado, onde não durou muito tempo.
Local polêmico, ou não, a verdade é que o “Maragato” marcou
história na noite gabrielense. Era conhecido por outras querências. Certa vez o
Rio-Grandense, de Rio Grande veio jogar com a S.E.R. São Gabriel e o meu
saudoso amigo e compadre, Bento Peixoto Castelã, que era técnico do time
“papa-areia”, quis conhecer o famoso bailão.
E lá estivemos. Casa lotada, boa música e a presença feminina em
grande número. Bebemos umas cervejas, ensaiamos umas danças e fomos embora
quase ao amanhecer. E tudo correu na maior tranquilidade.
Bochincho grosso lá dentro, pelo que sei só aconteceu uma vez, em
que o filho de um conhecido comerciante “patrício” da cidade descarregou o
revólver, dando tiros no meio do salão. A sorte é que não acertou em ninguém.
PROBLEMAS DE SAÚDE
“Gaitinha”, em março de 2011 andou enfrentando alguns problemas de
saúde. Teve trombose em uma das pernas e precisou ser hospitalizado na Santa Casa
por alguns dias.
Nesses momentos é que se sabe quem é amigo de verdade. Por justiça
conto isto: o “Braguinha”, outro grande divulgador das coisas do Rio Grande do
Sul foi um verdadeiro anjo da guarda, que deu toda a assistência ao nosso
gaiteiro, que não tem familiares em São Gabriel.
E trombose é coisa séria. Sei disso, pois já enfrentei o problema
em duas oportunidades. Se não fizer o tratamento correto, a pessoa corre o
risco de ir pro “beleléu”. Hoje, sou obrigado a tomar o remédio “Varfarina”,
2,5 miligramas pelo resto da vida.
E assim mesmo, volta e meia sinto dores nas pernas. E isso causa
muito medo. Não descuido de tomar o medicamente diariamente. E também “Metformina”
850 miligramas, contra a diabetes e “Losartana Potássica”, 50 miligramas, para
combater a hipertensão. O que não impede que consuma outros “medicamentos” não
receitados por médicos, como a cervejinha gelada.
E também não refugo uma boa pinga, especialmente daquelas
misturadas com algumas ervas medicinais tipo “carqueja”, “losna”, “guaco” e
naturalmente o nosso tão apreciado “butiá”.
ALVO DE BANDIDOS
Bandido tem para tudo que é lado. E não distingue suas vítimas.
Não quer saber se o sujeito é rico ou pobre, branco ou preto. Nem o nosso
querido “Gaitinha”, figura popularíssima, que não faz mal a ninguém, escapou
dessa violência que atinge todas as cidades, sejam grandes, médias ou pequenas.
Em março de 2015, quando ele caminhava, como sempre faz, pelas
ruas da cidade, foi atacado por malfeitores que carregaram a sua mala de
garupa, onde guarda documentos, dinheiro e a gaita de boca.
Com a surpresa do inesperado ataque, “Gaitinha” sofreu um mal
súbito. Por sorte algumas pessoas que passavam pelo local e a tudo assistiram,
o socorreram e os agressores fugiram em disparada. Levado ao hospital se
recuperou em seguida. O acontecido revoltou boa parte da comunidade, que gosta
e admira o destacado tradicionalista.
A partir dai tomou o cuidado de não andar sozinho pelas ruas da
cidade tarde da noite. Quando faz alguma apresentação noturna, sempre pede a
alguém que o leve até sua casa. E como é querido por todos, sempre encontra
alguém que o ajude.
São Gabriel não é nenhuma metrópole, mas já convive com a
violência, hoje presente em qualquer lugar. A cidade ainda não se recuperou do
recente brutal assassinato de um PM, no Posto Batovi, que virou lugar de
concentração de gente de toda a espécie.
Pelo que sei, nem o centro da cidade escapa. Seguidamente
acontecem brigas generalizadas frente a um clube social, promovidas por
elementos ligados a facções conhecidas por “bondes”.
TORCEDOR DO INTERNACIONAL
Nunca vi “Gaitinha” entrar no estádio Sílvio de Faria Corrêa para
torcer pelo time da cidade. Mas sei que ele é torcedor do Internacional, de Porto
Alegre. Embora não saiba dizer a escalação do time ou o nome de qualquer
atleta, sempre se declarou torcedor do “Colorado”.
Até penso em lhe presentear com uma camisa do Internacional, com o
nome “Gaitinha” gravado às costas. Tenho certeza que ele vai gostar e vestir.
Não vai fazer o mesmo que o chapéu goiano. Acho que é colorado por influência
do amigo comum, “Seco” Assis Brasil.
Cada vez que falo de torcedores colorados em São Gabriel, não
posso esquecer o saudoso Adão (não sei o sobrenome), carroceiro que trabalhava
para lojas de móveis da cidade, especialmente a Colombo. Toda a vez que passava
no “Bar Pilequinho”, parava a carroça e beijava o escudo do Internacional, na
camisa que orgulhosamente sempre vestia.
Quem não gostava nada disso era o Caio, meu amigo que na época
trabalhava na Colombo e é gremista de quatro costados. Mas essa é outra
história.
No “Bar Du Caio” (agora não é mais), perto da Santa Casa é sempre possível
assistir na TV os jogos do Campeonato Brasileiro, especialmente do
Internacional. E muitas vezes vi “Gaitinha” por lá, sentado pertinho do amigo
Luiz Eduardo Assis Brasil, o “Seco”, colorado de primeira linha, igual aos
irmãos Luiz Marengo e Caio Rangel.
NO LIVRO AMENIDADES 7
Frequentador assíduo do bar é o amigo doutor João Alfredo Reverbel
Bento Pereira, mas sem coragem de assistir por lá os jogos do seu Grêmio,
porque é lugar comum só se ver “colorados” ocupando mesas e cadeiras.
Mas ele não poderia deixar de falar algo sobre “Gaitinha”. Essa
descrição do nosso estimado herói está no livro “Amenidades 7”, leitura
obrigatória. E o amigão João Alfredo escreveu essa passagem, em crônica
publicada no dia 16 de abril de 2014.
Contou ele que “num domingo, no bar "Du" Caio, estava a
parceria toda reunida e em ebulição, quando chegou o “Gaitinha” e, como estava
fresquinho, quase frio, desencavou um sobretudo do fundo do baú, além da
camiseta, do moletom, da camisa, do colete, do casaco, do pala e do
indefectível chapéu de aba larga, com uma fita do “Sentinela do Forte”.
Como se não bastasse tudo isso, uma cruz missioneira balançava no
peito. Era uma figura assustadora. Atracou-se numa branquinha, misturada com
catuaba, além de um pacotinho de amendoim. Apesar da vestimenta e da
mastigação, é bom ouvinte. Participativo, riu bastante, sem perder o ar de
bonomia, sempre mastigando.
Sou observador e, enquanto sorvia a minha “Kaiser Radler”, de
baixíssimo teor alcoólico, pensei no grande Liberato Vieira da Cunha, que
disse: "Você captura o efêmero, na ingênua tentativa de emprestar-lhe um
levíssimo traço do infinito".
Como já estava passando da uma hora da tarde, levantei, fiz a
despedida, paguei a conta e tomei o rumo de casa, com o domingo ganho.
MÚSICA SERTANEJA
Certa vez estava no “Bar Du Caio”, ao lado da Rádio Batovi. E por
lá se encontravam várias pessoas que iam participar de um programa
tradicionalista no “Galpão Canário Alegre”, na simpática emissora onde tive a
honra de trabalhar.
E o pessoal aproveitava o espaço de tempo que ainda restava, para
dar uma “amaciada” na garganta. E o que se viu foi de arrepiar: dois moços,
devidamente pilchados, de botas, bombachas, tirador, chapéu quebrado na cabeça
e lenço no pescoço, cantando músicas sertanejas.
Só “Gaitinha” se manteve fiel as nossas tradições. Pegou sua
gaitinha de boca e o pandeiro, e salvou a noite. Eu o cumprimentei por isso,
sob os olhares desconfiados dos “pseudos” gaúchos presentes.
E não foi só no “Du Caio” que aconteceu isso. Em muitos bares e
lojas comerciais de São Gabriel se houve a todo volume músicas sertanejas. Nos
carros de som pelas ruas, também. Até no “Galeto do Brito”, meu grande amigo,
certa vez um enorme telão mostrava “Bruno e Marrone”. Quase perdi a vontade de
almoçar.
Aqui fora ninguém quer saber da música tradicionalista do Rio
Grande do Sul. Eu sou testemunha disso. Muitas vezes nos bares que freqüento em
Brasília tentei colocar CDs gaúchos e a bronca foi geral.
Teixeirinha e Berenice Azambuja ainda toleram, e assim mesmo
raramente. Então, não vejo razão para darmos atenção a coisas que nada tem a
ver com a gente.
E às nossas rádios também tem culpa no cartório, pois até
apresentam programas tipo campo e sertão. Com isso acabam incentivando o gosto
por um tipo de música, que deveria ser chamada de “sertanojo”.
Os nossos CTGs, que poderiam fazer campanhas contra essa invasão
musical, também não são mais como antigamente. Prova disso são os rodeios, que
já viraram cópias de Barretos (SP), até com locutores gritando a todo o pulmão:
“Segura peão”. Assim, parece que a coisa não tem jeito mesmo. (Por Nilo Dias - Publicado no jornal "O Fato", de São Gabriel (RS), edição de 24 de fevereiro de 2017)
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