O município de São Gabriel é conhecido por ter sido palco de
batalhas e combates sanguinários, em muitas guerras que tiveram episódios em
seu solo sagrado. Também por ser berço de militares ilustres e políticos
destacados.
E não fica só nisso. Tem muito mais. Por aqui nasceram outros
vultos que alcançaram renome nacional nas artes, na religião e em muitas outras
coisas.
E não se deve esquecer a vocação que a cidade sempre teve para
venerar pessoas, locais e ter na credulidade algo que se mistura com realidade,
história ou ficção.
Vou procurar me aprofundar um pouco nessa questão. Começando com a
“Ciganinha” e a “Guapa”, que estão sepultadas no cemitério local. A
“Ciganinha”, bem a esquerda de quem entra. É a primeira catacumba, embaixo. A
“Guapa” já mais para o centro, mas bem fácil de achar.
E não tem outro jeito para contar com precisão tudo o que
aconteceu em São Gabriel, no passado, que não seja pedindo socorro ao
historiador da cidade, o admirável amigo Osório Santana Figueiredo.
Ainda bem que tenho na minha biblioteca a totalidade dos livros
que ele escreveu. O que garante um estudo minucioso sobre qualquer coisa que
diga respeito a São Gabriel. E o seu Osório conta com mínimos detalhes os
passos desses personagens que ajudaram a criar toda essa gama de episódios.
Em 1944, a cidade conheceu um de seus piores invernos.
A geada tapava de branco os campos. O vento Minuano soprava
implacável, trazendo uma sensação de mais frio. Sei bem o que é isso, pois
convivi vários anos com o tenebroso frio gaúcho, em Dom Pedrito, minha terra
natal, e em São Gabriel, cidade que mora no meu coração.
E foi num cenário desses que um grupo de ciganos com suas
famílias, chegou a São Gabriel. Vieram em caminhões e automóveis, acampando em
um terreno baldio, perto dos trilhos da Viação Férrea, onde hoje se encontra um
Supermercado.
Anos mais tarde os ciganos acampavam em outro local, uma área
próxima ao Armazém Motta, do meu saudoso sogro Gelcy Motta. E quando eu e a
Teresinha, minha esposa, morávamos lá, muitas vezes visitamos os acampamentos e
até fizemos amizades com vários ciganos e ciganas.
Trata-se de gente boa, nômades por natureza. Comerciantes por
vocação e necessidade. Naqueles tempos, quando eu era criança, vendiam tachos
de cobres, objetos que duravam uma vida inteira. Ficou um lá em São Gabriel,
que ainda pretendo trazer para Brasília, e com ele fazer doces de dar água na
boca.
Talvez escondido da amiga Carmenci, viúva do meu sogro e guardiã
do que sobrou do armazém. Brincadeira a parte, tenho certeza que ela não vai se importar com
isso e me garantirá o presente.Os ciganos também vendiam baterias de carros. E
as ciganas buscavam nas ruas clientes interessados em saber coisas de suas
vidas.
A futurologia foi sempre uma característica delas. Os pagamentos
podiam ser feitos de várias formas, dinheiro, objetos diversos, aves e outros animais.E
quem um dia não deixou uma cigana ler a sua mão? Eu deixei muitas vezes.
Era divertido e as histórias contadas por uma, geralmente era
repetida por outra. E não vaticinavam coisa ruim para ninguém.A curiosidade
levava dezenas de pessoas a visitar os ciganos, especialmente aos domingos e
feriados.
Nessas ocasiões tudo se transformava em festa.Lembro de um
casamento de ciganos celebrado lá perto de casa. Uma semana inteira de alegria.
Comida sobrando e bebida também. Baile da manhã a noite e as vezes varando as
madrugadas, tendo a lua como acompanhante.
Uma característica das ciganas jovens é a beleza. Pena que com a
idade avançando ela diminua bastante, talvez por força da vida que levam,
sempre viajando.
E entre as mais bonitas estava Maria Anita Costichi, que mantinha
a formosura, mesmo com 40 anos de idade.Era alegre, descontraída e tratava a
todos com educação e doçura no trato. E rapidamente fez amizade com a gente da
cidade.
Era solidária com pessoas doentes, não só do grupo como de qualquer
outro morador.Mas ela própria, de repente viu-se vítima de terrível doença. Mas
como esse mundo é traiçoeiro e as vezes não perdoa nem as melhores pessoas,
Anita teve de lutar pela vida.
Não foi mais vista andando pelo acampamento. Teve de recolher-se a
uma tenda, visto que o mal se agravava com rapidez.Até que na noite de 8 de
agosto daquele ano de 1944, por volta de 22h30min, ela morreu.
O médico gabrielense, doutor Oswaldo Passos D’Utra, que a atendeu
durante o tempo em que esteve adoentada, atestou um câncer no reto, como a
causa da morte.Uma coisa chamou a atenção das pessoas que compareceram ao
velório de Anita. Seus companheiros ciganos pareciam não demonstrar qualquer
sensação de dor.
Tudo funcionava normalmente. Ninguém derramava lágrimas e nem
lamentava o ocorrido.Por desconhecer o modo de vida dos ciganos, as pessoas
estranhavam esse comportamento. Na realidade, esse povo tem uma maneira
diferente de encarar a morte. É outra cultura. A morte é vista como algo
normal, próprio da vivência terrena.
O enterro da cigana teve um grande acompanhamento. Os ciganos
colocaram carros a disposição da população. Muita gente nunca andara de carro
antes. Os enterros de pobres especialmente, era feito naquela época no pulso,
pelos corredores do cemitério.
Pouco tempo depois, começaram a surgir às primeiras velas no
túmulo da “Ciganinha”. Seguindo-se a colocação de enfeites coloridos, fitas e
lenços vermelhos e recortes amarelos. E por fim dinheiro, que muitas vezes era
surrupiado.
Era gente pedindo milagres à cigana que virou santa.Sua fama de
“milagrosa” ultrapassou as fronteiras de São Gabriel e se espalhou por todas as
partes, seguindo-se verdadeiras romarias de pessoas a procura da cura de seus
males ou de decepções amorosas.
É comum até hoje deparar-se com dias em que a quantidade de
oferendas é tão grande, que os funcionários do cemitério são obrigados a
efetuar várias limpezas.Quando eu morava em São Gabriel, muitas vezes vi
pessoas ajoelhadas frente o tumulo da “Ciganinha”, pedindo alguma coisa e
pagando com algo colorido, o que se explica pelo gosto desse povo por cores
mais fortes.
A outra “santa do povo” foi Maria Isabel Hornos, popularmente
chamada de “Guapa”, uma uruguaia que veio morar em São Gabriel e se tornou dona
de um bordel.O apelido ganhou, porque gostava de se vestir a moda campeira, com
botas, bombacha e chapéu de aba larga.
Também era eximia tocadora de gaita e trovadora das mais
respeitadas.Tratava-se de uma mulher de beleza esplendorosa, cobiçada pelos homens
da cidade, na época. Nasceu no vizinho país em 15 de junho de 1897, tomando o
rumo de São Gabriel na década de 1920.
Sua casa ficava na rua Celestino Cavalheiro, onde funcionava uma
pensão de mulheres, a mais frequentada, não só por causa de “Guapa”, mas também
pelas lindas mulheres que lá se encontravam.
O fato de “Guapa” ser uma prostituta não queria dizer nada, perto
da bondade de seu coração. Dizem que ela vivia rodeada de crianças. Os vizinhos
a apreciavam. E ela se importava com os pobres, procurando sempre ajudar de
todas as formas, dando alimentos e roupas aos mais necessitados.
Todos os atributos que tinha, beleza, bom coração, honestidade,
não foram suficientes para que continuasse viva. Em uma noite de Carnaval, 3 de
março de 1924, “Guapa” foi covardemente assassinada com alguns tiros nas
costas, quando se enfeitava a frente de um espelho.
izem que os projéteis partiram da janela, do lado de fora,
desferidos por um cabo dos Provisórios do Exército. E o crime fora encomendado
por uma esposa ciumenta, que não tolerava o romance de seu marido, estancieiro
muito conhecido na cidade, com “Guapa”, mulher mais bonita que ela.
Como sempre acontece quando tem alguém poderoso envolvido em
crimes contra pobres, o culpado ficou impune. Até hoje o caso é comentado e nas
conversas de botequins, o nome da mandante do crime é falado abertamente, até
porque ela já morreu, faz tempo.
O que restou a “Guapa” é o seu espirito ter presenciado um
sepultamento com grande acompanhamento, pois era uma pessoa muito querida na
cidade, especialmente pelos mais pobres.O caixão foi carregado por dezenas de
pessoas, que se alternaram na piedosa missão até a chegada ao cemitério.
partir dai o seu túmulo
virou um santuário, onde pessoas de todas as partes chegam com flores e placas
de homenagens, para pagar promessas.E isso se deveu em muito a uma devota de
nome Modestina da Silva Dux, já falecida, que durante muitos anos promoveu no
“Dia de Finados” uma procissão até o túmulo daquela que ficou conhecida como
uma “santa do povo”.
A procissão deixou de ser feita, mas a devoção continua.O saudoso
tradicionalista Antônio Augusto Fagundes, escreveu um livro com o título de “As
Santas-Prostitutas: Um estudo de devoção popular no RS”, em que conta a
história de “Guapa” e de outras mulheres.
E foi nesse livro que encontrei a “Oração a Guapa”, que aqui
reproduzo e que foi mandado publicar por Modestina da Silva Dux:
A nossa protetora espiritual, nossa milagrosa Isabel (Guapa), peço
que afaste as más companhias, nos consiga saúde, boas amizades e bons negócios,
em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém.
Deus, com sua infinita misericórdia Divina e nossa protetora e
milagrosa Isabel Guapa, nos dê toda a confiança em vossos méritos perante Nosso
Senhor Jesus Cristo. Entrego-me a Vossa proteção rogando-vos afastar de mim as
más companhias, aproximando-me dos bons que podem auxiliar-me no caminho da
vida.
Livra-me de todos os meus inimigos, Visíveis e invisíveis, nossa
protetora e milagrosa Isabel Guapa, assim como Vós foste sacrificada
traiçoeiramente, assassinada pelas costas, roubando vossa preciosa vida.Protetora
e milagrosa Isabel (Guapa), Vós que a todos estende suas mãos protetoras e
amigas, com uma eterna gratidão a todos os seus devotos, que Deus nosso Pai
todo poderoso abençoe a Santa Fraternidade, entre todos os seus filhos, com as
divinas Vibrações de Harmonia, Amor, Verdade e Justiça.
Que a Paz de Deus a guarde, iluminada e milagrosa Isabel
Guapa.Viva Nosso Senhor Jesus Cristo. Viva a nossa protetora espiritual a
milagrosa Isabel Guapa.
Pede se a graça e reza-se 1 Padre Nosso 1 ave Maria. Em nome do
Pai, do Filho, do Espírito Santo, Amém.Eu pretendo em outras oportunidades
voltar a tocar no tema, que realmente é interessante e envolvente.
Já há quem pense em explorar esse nicho como referencial
turístico, o que não deixa de ser uma boa idéia.O espaço do cemitério de São
Gabriel já foi objeto de estudo, bem como outros locais da cidade relacionados
ao enterramento de pessoas, como a “Capela dos Fuzilados”, a “Capela dos
“Noivinhos” e o “Nicho Funerário” com os restos mortais do monsenhor Henrique Rech,
na Igreja Matriz.
Seria, vamos chamar de turismo imaterial. Já o turismo em
cemitérios já existe, tendo como foco principal a exploração do patrimônio
artístico e arquitetônico. E isso também poderia ser explorado em São Gabriel.
Sabe-se que em algumas localidades cemitérios já foram
transformados em museus, sem se afastarem das suas funções originais.
(Pesquisa: Nilo Dias - Publicado no jornal "O Fato", de São
Gabriel-RS, edição de 14 de julho de 2017)
Maria Izabel Hornos, a "Guapa"
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