quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O caudilho Aparício Saraiva

Já escrevi para o jornal “O Fato” matérias sobre o conturbado período vivenciado no Rio Grande do Sul e no Uruguai, que vai de 1893 a 1904. Mas não contei a história de um dos grandes vultos revolucionários que foi o caudilho Aparício Saraiva. Essa lacuna eu a preencho agora.

Aparício Saraiva era uruguaio, nascido no dia 16 de agosto de 1856, em Santa Clara de Olimar, à época pertencente ao departamento de Cerro Largo e hoje ao departamento de Treita y Tres.

Seu pai, Francisco Saraiva era brasileiro. O seu sobrenome se castelhanizou como Saravia. Era um homem rico, dono de uma estância localizada na Cuchilla Grande, a cinco quilômetros ao Norte de Santa Clara de Olimar.

Seu pai havia lutado na Guerra dos Farrapos, mudou-se para o Uruguai em busca de uma vida melhor, estabelecendo-se em Cerro Largo, e lá fez fortuna. Foi, com certeza, um dos homens mais ricos do país naquela época.

Aparício foi o quarto filho de treze de Francisco Saraiva e Propícia, cujo nome foi castelhanizado para Pulpicia da Rosa. Desses, apenas Gumercindo, que era o mais velho e Basilício, foram registrados como brasileiros.

Antônio Florício (Chiquito), Aparício, José, Camilo, Francisco, Juana, Amélia, Mariana, Timóteo, Teresa e Sensata eram castelhanos. Francisco e Provincia queriam que Gumercindo e Aparício fosse médicos ou advogados.

E para isso os matricularam no Colégio de Montero Vidaurreta, em Montevidéu. Mas os dois logo se aborreceram e aproveitaram a primeira oportunidade para escapar da escola.

Ao alvorecer de janeiro de 1893, Aparício deixou a casa dos pais e foi juntar-se com seu irmão Gumercindo, batizado no Brasil, que se encontrava acampado nos cerros de Aceguá, em território uruguaio, comandando uma tropa de 400 homens, na maioria brasileiros.

Quase todos usavam lenços vermelhos, menos Aparício e Gumercindo. Isso se devia ao fato de ambos pertenceram ao Partido Nacional, os “blancos”.

E o vermelho lembrava os antigos inimigos. Os dois irmãos, ao que parece, professavam um respeito sagrado aos símbolos. Não importava que a guerra fosse em outro país, por outros motivos, talvez por outras idéias.

Em 2 de fevereiro de 1893, uma primeira coluna chefiada por Gumercindo, entrou em território brasileiro. Depois adentrou outra, esta comandada por Aparício.

Foi ai que teve início a Revolução Federalista que envolveu todo o Sul do Brasil e que notabilizou os irmãos Gumercindo e Aparício. Depois que Gumercindo morreu, em 1894, Aparício foi designado general das tropas federalistas.

UMA IDENTIDADE COMUM

É importante entender que o Rio Grande do Sul e o Uruguai foram estruturados em uma região na qual se reconhece uma identidade comum, desde os primórdios, não pelo espaço que ocupam, mas pela história que as une.

Foi nesse cenário que surgiu a figura de Aparício Saraiva, intervindo de um lado e de outro da fronteira em momentos específicos de conturbação política.

Durante a Revolução de 1893, as ligações de um grupo de rio-grandenses – os federalistas - com uma facção política uruguaia – os blancos -, causou um enorme constrangimento internacional e gerou uma crise significativa no relacionamento diplomático.

A revolução que eclodiu no dia 2 de fevereiro de 1893 impressionou pelo grande número de uruguaios ligados ao Partido Blanco, que estavam enfileirados juntos aos federalistas, que entraram em guerra contra o governo de Júlio de Castilhos.

Sabe-se que além das identificações fronteiriças em nível sócio cultural e econômico, um componente fundamental representado pela posição do Partido Blanco na cena política uruguaia no início da década de 1890, foi a eleição do colorado Julio Herrera y Obes para a presidência da República, em março de 1890.

Em promessa de campanha ofereceu uma participação aos blancos, com o domínio político sobre alguns departamentos e a participação dos partidos no ministério. Porém, o mesmo cuidado não foi tomado em relação à nomeação dos governos departamentais, as chamadas chefaturas.

Os blancos deveriam receber quatro chefaturas, mas Herrera só deu três, Cerro Largo, Treinta y Tres e Flores, diminuindo o grau prometido de participação do partido na política do país. Por isso não restou aos blancos outra solução que não fosse dada pela via revolucionária.

SITUAÇÕES IDÊNTICAS

Guardadas as proporções, pode-se dizer que os federalistas, em 1893, abriram um ciclo revolucionário que se parecia com os uruguaios, que partilhavam a mesma zona de fronteira. Em síntese, federalistas gaúchos e blancos uruguaios, encontravam-se quase na mesma situação.

O apelo à violência revolucionária foi o liame unificador entre os federalistas de Gaspar Silveira Martins e os blancos de Aparício Saraiva. Não se tratava tão somente de um assalto ao poder. O cerne dessas revoluções era o dilema centrado na impossibilidade da disputa política.

Pelo lado federalista, veremos a perseguição que lhes foi impingida por um governo despótico, que se adonou do poder através de um golpe, em 1892, e que, a partir daí, desencadeou uma perseguição sem trégua à oposição.

Por sua vez, o Uruguai encontrava-se dividido em dois grandes feudos: o governo blanco, instalado no departamento de Cerro Largo, e o governo instalado em Montevidéu, ao redor do qual gravitavam os negócios da cidade-porto.

Durante a revolução de 1893, a aliança entre federalistas e blancos contou com a decisiva atuação de Gumercindo Saraiva, que desempenhou o papel de elo entre os revolucionários rio-grandenses e blancos uruguaios.

Não são muitas as referências bibliográficas sobre Gumercindo Saraiva, tanto por parte da historiografia brasileira quanto pela uruguaia.

É provável que, em virtude da destacada participação desse personagem na Revolução Federalista, sejam mais freqüentes as menções a ele nas obras que tratam do episódio, as quais, em sua grande maioria, são de autoria de historiadores brasileiros.

Por parte da historiografia uruguaia são ainda mais escassas as fontes bibliográficas a respeito de Gumercindo, dando-se mais evidência à biografia de seu irmão, Aparício.

Discute-se à nacionalidade de Gumercindo Saraiva, se uruguaio ou brasileiro. Parece não haver dúvida quanto ao local de seu batismo, uma vez que, em 1923, foi encontrada sua certidão na Câmara Eclesiástica de Pelotas.

Entretanto, o local de batismo, naquela época, não correspondia necessariamente ao de nascimento, ou seja, em muitos casos, a pessoa nascia no Uruguai e era batizada no Rio Grande do Sul e vice-versa.

Tal situação reafirma que a fronteira gaúcha com o Uruguai não era percebida como divisão de modos e costumes de vida, sendo habitual ser nascido em um lado e ser batizado em outro.

Depreende-se que, fosse a nacionalidade de Gumercindo brasileira, quer fosse oriental, o caudilho parecia sentir-se à vontade tanto num lado como no outro.

Pode-se afirmar que Gumercindo Saraiva não era um estrangeiro no Rio Grande; somente o foi para o pensamento que inspirou a acusação de que aos federalistas haviam se unido bandidos de outras nacionalidades.

Esse foi mais um argumento usado pelo governador Castilhos contra os revolucionários de 1893. As afinidades com esse grupo firmaram-se ainda mais após terem sido apoiados também por seu irmão, Aparício.

UM ELO ENTRE FEDERALISTAS E BLANCOS

Combatendo juntos, encamparam a causa dos federalistas contra Castilhos. Os dois estiveram juntos no sangrento “Combate do Cerro do Ouro”, travado em agosto de 1893 em solo gabrielense.

Mas o mais sangrento de todos os combates aconteceu na atual estação de Hulha Negra, em Bagé, no dia 28 de novembro de 1893, o chamado “Massacre do Ouro Negro”.

Os republicanos, comandados pelo veterano marechal do Exército, Isidoro Fernandes, vitorioso contra Uribe, e Rosas na Guerra do Paraguai, contavam com cerca de 1.500 homens, uma força três vezes menor que os “maragatos”, comandados pelo general Joca Tavares.

Além de ter um número bem inferior de combatentes, os republicanos ainda contavam, para chegar a esse número, com centenas de civis, provenientes de Piratini, Canguçu e Bagé e integrantes do Corpo Provisório da Cavalaria, praticamente sem qualquer experiência em combate.

Após um combate que durou várias horas, já sem munição e água, os republicanos renderam-se, mediante a promessa de um tratamento humanitário. Cerca de 200 já haviam tombado no campo de batalha e outros tantos, todos militares, foram poupados.

Os demais, cerca de 300, todos civis e integrantes do Corpo Provisório da Cavalaria, foram colocados em uma mangueira e degolados, restando-lhes apenas, como consolo, depois de terem a garganta cortada, caminharem até um mato próximo, para morrerem longe de todos.

Esses relatos praticamente dão a medida do que aconteceu nos demais combates, alternando-se as vitórias para um e outro lado, mas sempre com massacres, degolas e desmandos, de parte a parte.

Os Saraiva formaram um importante elo entre os federalistas e os blancos, convertendo esses em um fator de reforço importantíssimo para a luta, tanto no que diz respeito às suas investidas no território rio-grandense quanto no que se refere a infraestrutura ofertada nos departamentos do norte uruguaio, por eles dominados.

Em todo o caso, o prestígio de Aparício só cresceu. Em 1893 demonstrou sua genialidade como grande estrategista militar. Após o encerramento da Revolução Federalista, apareceria como o grande estrategista político.

A VOLTA DE APARÍCIO AO URUGUAI

Quando o conflito acabou, em 1895, Aparício voltou ao Uruguai, desfrutando de grande prestígio, visto que os jornais de Montevidéu cobriram amplamente os embates.

A volta de Aparício ao seu país foi destacada pela imprensa local. Nessa ocasião um redator do diário “La Razón” de Montevidéu, fez uma entrevista com o caudilho na qual ele afirmava que não pensava mais em envolver-se em revoluções.

Os acontecimentos posteriores encarregaram-se de desmentir Saraiva, provando que não era de todo infundado o rumor corrente desde os idos de 1893, que atribuía parte de seu envolvimento na guerra civil rio-grandense, ao lado do irmão Gumercindo, a um grande ensaio para sua estréia como condutor dos sucessos políticos em sua terra.

Em seu país teve destacada atuação, tanto militar como política, pelo Partido Blanco em disputas internas, tornando-se o líder maior de seu partido e eminência parda no governo blanco uruguaio. Recebeu o apelido de “Aquila Branca” (Águia Branca), por usar, quando em combate, um pala branco.

Comandou a Revolução Blanca, no Uruguai, também chamada de “Revolucion de las Lanzas”, em 1897, que terminou com a assinatura da “Paz de Abril”, com a existência de dois governos: Cuestas, colorado, em Montevideu e um blanco, com Aparício Saraiva em El Cordobes.

Depois comandou a Guerra de 1904, no Uruguai, contra o governo de Montevidéu. A “Batalha de Masoller”, a última da guerra, travada na localidade do mesmo nome, terminou com a debandada das tropas saraivistas após um grave ferimento de Aparício.

A luta foi desigual. Os governistas tinham armamentos modernos. E Aparício, ao expor-se cavalgando em frente a suas fileiras, foi alvejado por uma arma Mauser.

Ferido, foi levado para a estância de dona Luiza Pereira, mãe de João Francisco Pereira de Souza, seu inimigo na Revolução Federalista, que ficava a cinco quilômetros da fronteira com o Uruguai.

Neste local, que hoje é área rural de Santana do Livramento, Aparício morreu no dia 10 de setembro de 1904, devido a complicações de perfuração abdominal.

Ele foi sepultado no Panteón da Família Pereira de Souza, na cidade de Santana do Livramento. Em 1921, 17 anos depois da morte, seus restos foram reclamados pelo povo uruguaio e levados para “Rincón de Artigas”, hoje também área do município de Santana do Livramento. E em 12 de janeiro do mesmo ano, ao cemitério de Buceo, em Montevidéu.

POLÍTICOS LEGENDÁRIOS

Aparício foi o último representante de uma era de políticos legendários de estampa gauchesca no Uruguai. Com ele, findou um ciclo revolucionário, que começou com a Revolução Federalista de 1893 no Sul do Brasil, passou pelo conflito Blanco em 1897, no Uruguai e culminou na Guerra de 1904.

É atribuída a Aparício Saraiva a frase: “Prefiro deixar meus filhos pobres com uma pátria, do que ricos sem ela”.

Aparício Saraiva e Gumercindo Saraiva eram irmãos e tinham propriedades no Brasil e no Uruguai. Ambos foram importantes para a história do Rio Grande do Sul.

Gumercindo foi morto na Revolução de 93 e está sepultado em Santa Vitória do Palmar. Já Aparício, que foi registrado no Uruguai, está sepultado lá. Eram homens muito ativos, com espírito de guerreiros.

Em novembro de 2011, faleceu em Curitiba (PR), Oscar Cecílio Saraiva, 83 anos, filho de Aparício Saraiva e Ida Nemtz Saraiva.

Na etapa revolucionária de 1893 a 1904 Aparício Saraiva foi o grande condutor dos conflitos políticos na fronteira. No que tange à conexão com os federalistas, foi grande estrategista militar responsável pela longa duração do conflito, ao assumir o lugar de seu irmão Gumercindo, após a morte deste.

Tendo sido os acontecimentos no Rio Grande o palco para seu grande ensaio, é certo que Aparício tornou-se a partir de seu retorno ao Uruguai o líder incontestável dos blancos da fronteira norte.

Dali liderou os levantes que atormentaram a república vizinha por quase uma década, assombrando as autoridades de Montevidéu. (Pesquisa: Nilo Dias - Publicada no jornal "O Fato", de São Gabriel-RS em 25/10/2017)) 


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