Já escrevi para o jornal “O Fato” matérias sobre o conturbado
período vivenciado no Rio Grande do Sul e no Uruguai, que vai de 1893 a 1904.
Mas não contei a história de um dos grandes vultos revolucionários que foi o
caudilho Aparício Saraiva. Essa lacuna eu a preencho agora.
Aparício Saraiva era uruguaio, nascido no dia 16 de agosto de 1856,
em Santa Clara de Olimar, à época pertencente ao departamento de Cerro Largo e hoje
ao departamento de Treita y Tres.
Seu pai, Francisco Saraiva era brasileiro. O seu sobrenome se
castelhanizou como Saravia. Era um homem rico, dono de uma estância localizada
na Cuchilla Grande, a cinco quilômetros ao Norte de Santa Clara de Olimar.
Seu pai havia lutado na Guerra dos Farrapos, mudou-se para o
Uruguai em busca de uma vida melhor, estabelecendo-se em Cerro Largo, e lá fez
fortuna. Foi, com certeza, um dos homens mais ricos do país naquela época.
Aparício foi o quarto filho de treze de Francisco Saraiva e
Propícia, cujo nome foi castelhanizado para Pulpicia da Rosa. Desses, apenas
Gumercindo, que era o mais velho e Basilício, foram registrados como
brasileiros.
Antônio Florício (Chiquito), Aparício, José, Camilo, Francisco,
Juana, Amélia, Mariana, Timóteo, Teresa e Sensata eram castelhanos. Francisco e
Provincia queriam que Gumercindo e Aparício fosse médicos ou advogados.
E para isso os matricularam no Colégio de Montero Vidaurreta, em
Montevidéu. Mas os dois logo se aborreceram e aproveitaram a primeira
oportunidade para escapar da escola.
Ao alvorecer de janeiro de 1893, Aparício deixou a casa dos pais e
foi juntar-se com seu irmão Gumercindo, batizado no Brasil, que se encontrava acampado
nos cerros de Aceguá, em território uruguaio, comandando uma tropa de 400
homens, na maioria brasileiros.
Quase todos usavam lenços vermelhos, menos Aparício e Gumercindo.
Isso se devia ao fato de ambos pertenceram ao Partido Nacional, os “blancos”.
E o vermelho lembrava os antigos inimigos. Os dois irmãos, ao que
parece, professavam um respeito sagrado aos símbolos. Não importava que a
guerra fosse em outro país, por outros motivos, talvez por outras idéias.
Em 2 de fevereiro de 1893, uma primeira coluna chefiada por Gumercindo,
entrou em território brasileiro. Depois adentrou outra, esta comandada por Aparício.
Foi ai que teve início a Revolução Federalista que envolveu todo o
Sul do Brasil e que notabilizou os irmãos Gumercindo e Aparício. Depois que Gumercindo
morreu, em 1894, Aparício foi designado general das tropas federalistas.
UMA IDENTIDADE COMUM
É importante entender que o Rio Grande do Sul e o Uruguai foram
estruturados em uma região na qual se reconhece uma identidade comum, desde os
primórdios, não pelo espaço que ocupam, mas pela história que as une.
Foi nesse cenário que surgiu a figura de Aparício Saraiva,
intervindo de um lado e de outro da fronteira em momentos específicos de
conturbação política.
Durante a Revolução de 1893, as ligações de um grupo de
rio-grandenses – os federalistas - com uma facção política uruguaia – os
blancos -, causou um enorme constrangimento internacional e gerou uma crise
significativa no relacionamento diplomático.
A revolução que eclodiu no dia 2 de fevereiro de 1893 impressionou
pelo grande número de uruguaios ligados ao Partido Blanco, que estavam
enfileirados juntos aos federalistas, que entraram em guerra contra o governo
de Júlio de Castilhos.
Sabe-se que além das identificações fronteiriças em nível sócio
cultural e econômico, um componente fundamental representado pela posição do
Partido Blanco na cena política uruguaia no início da década de 1890, foi a
eleição do colorado Julio Herrera y Obes para a presidência da República, em
março de 1890.
Em promessa de campanha ofereceu uma participação aos blancos, com
o domínio político sobre alguns departamentos e a participação dos partidos no
ministério. Porém, o mesmo cuidado não foi tomado em relação à nomeação dos
governos departamentais, as chamadas chefaturas.
Os blancos deveriam receber quatro chefaturas, mas Herrera só deu
três, Cerro Largo, Treinta y Tres e Flores, diminuindo o grau prometido de
participação do partido na política do país. Por isso não restou aos blancos
outra solução que não fosse dada pela via revolucionária.
SITUAÇÕES IDÊNTICAS
Guardadas as proporções, pode-se dizer que os federalistas, em
1893, abriram um ciclo revolucionário que se parecia com os uruguaios, que
partilhavam a mesma zona de fronteira. Em síntese, federalistas gaúchos e
blancos uruguaios, encontravam-se quase na mesma situação.
O apelo à violência revolucionária foi o liame unificador entre os
federalistas de Gaspar Silveira Martins e os blancos de Aparício Saraiva. Não
se tratava tão somente de um assalto ao poder. O cerne dessas revoluções era o
dilema centrado na impossibilidade da disputa política.
Pelo lado federalista, veremos a perseguição que lhes foi
impingida por um governo despótico, que se adonou do poder através de um golpe,
em 1892, e que, a partir daí, desencadeou uma perseguição sem trégua à
oposição.
Por sua vez, o Uruguai encontrava-se dividido em dois grandes
feudos: o governo blanco, instalado no departamento de Cerro Largo, e o governo
instalado em Montevidéu, ao redor do qual gravitavam os negócios da
cidade-porto.
Durante a revolução de 1893, a aliança entre federalistas e
blancos contou com a decisiva atuação de Gumercindo Saraiva, que desempenhou o
papel de elo entre os revolucionários rio-grandenses e blancos uruguaios.
Não são muitas as referências bibliográficas sobre Gumercindo
Saraiva, tanto por parte da historiografia brasileira quanto pela uruguaia.
É provável que, em virtude da destacada participação desse
personagem na Revolução Federalista, sejam mais freqüentes as menções a ele nas
obras que tratam do episódio, as quais, em sua grande maioria, são de autoria
de historiadores brasileiros.
Por parte da historiografia uruguaia são ainda mais escassas as
fontes bibliográficas a respeito de Gumercindo, dando-se mais evidência à
biografia de seu irmão, Aparício.
Discute-se à nacionalidade de Gumercindo Saraiva, se uruguaio ou
brasileiro. Parece não haver dúvida quanto ao local de seu batismo, uma vez
que, em 1923, foi encontrada sua certidão na Câmara Eclesiástica de Pelotas.
Entretanto, o local de batismo, naquela época, não correspondia
necessariamente ao de nascimento, ou seja, em muitos casos, a pessoa nascia no
Uruguai e era batizada no Rio Grande do Sul e vice-versa.
Tal situação reafirma que a fronteira gaúcha com o Uruguai não era
percebida como divisão de modos e costumes de vida, sendo habitual ser nascido
em um lado e ser batizado em outro.
Depreende-se que, fosse a nacionalidade de Gumercindo brasileira,
quer fosse oriental, o caudilho parecia sentir-se à vontade tanto num lado como
no outro.
Pode-se afirmar que Gumercindo Saraiva não era um estrangeiro no
Rio Grande; somente o foi para o pensamento que inspirou a acusação de que aos
federalistas haviam se unido bandidos de outras nacionalidades.
Esse foi mais um argumento usado pelo governador Castilhos contra
os revolucionários de 1893. As afinidades com esse grupo firmaram-se ainda mais
após terem sido apoiados também por seu irmão, Aparício.
UM ELO ENTRE FEDERALISTAS E BLANCOS
Combatendo juntos, encamparam a causa dos federalistas contra
Castilhos. Os dois estiveram juntos no sangrento “Combate do Cerro do Ouro”,
travado em agosto de 1893 em solo gabrielense.
Mas o mais sangrento de todos os combates aconteceu na atual
estação de Hulha Negra, em Bagé, no dia 28 de novembro de 1893, o chamado
“Massacre do Ouro Negro”.
Os republicanos, comandados pelo veterano marechal do Exército,
Isidoro Fernandes, vitorioso contra Uribe, e Rosas na Guerra do Paraguai,
contavam com cerca de 1.500 homens, uma força três vezes menor que os
“maragatos”, comandados pelo general Joca Tavares.
Além de ter um número bem inferior de combatentes, os republicanos
ainda contavam, para chegar a esse número, com centenas de civis, provenientes
de Piratini, Canguçu e Bagé e integrantes do Corpo Provisório da Cavalaria,
praticamente sem qualquer experiência em combate.
Após um combate que durou várias horas, já sem munição e água, os
republicanos renderam-se, mediante a promessa de um tratamento humanitário.
Cerca de 200 já haviam tombado no campo de batalha e outros tantos, todos
militares, foram poupados.
Os demais, cerca de 300, todos civis e integrantes do Corpo
Provisório da Cavalaria, foram colocados em uma mangueira e degolados,
restando-lhes apenas, como consolo, depois de terem a garganta cortada,
caminharem até um mato próximo, para morrerem longe de todos.
Esses relatos praticamente dão a medida do que aconteceu nos
demais combates, alternando-se as vitórias para um e outro lado, mas sempre com
massacres, degolas e desmandos, de parte a parte.
Os Saraiva formaram um importante elo entre os federalistas e os
blancos, convertendo esses em um fator de reforço importantíssimo para a luta,
tanto no que diz respeito às suas investidas no território rio-grandense quanto
no que se refere a infraestrutura ofertada nos departamentos do norte uruguaio,
por eles dominados.
Em todo o caso, o prestígio de Aparício só cresceu. Em 1893
demonstrou sua genialidade como grande estrategista militar. Após o
encerramento da Revolução Federalista, apareceria como o grande estrategista
político.
A VOLTA DE APARÍCIO AO URUGUAI
Quando o conflito acabou, em 1895, Aparício voltou ao Uruguai,
desfrutando de grande prestígio, visto que os jornais de Montevidéu cobriram
amplamente os embates.
A volta de Aparício ao seu país foi destacada pela imprensa local.
Nessa ocasião um redator do diário “La Razón” de Montevidéu, fez uma entrevista
com o caudilho na qual ele afirmava que não pensava mais em envolver-se em revoluções.
Os acontecimentos posteriores encarregaram-se de desmentir
Saraiva, provando que não era de todo infundado o rumor corrente desde os idos
de 1893, que atribuía parte de seu envolvimento na guerra civil rio-grandense,
ao lado do irmão Gumercindo, a um grande ensaio para sua estréia como condutor
dos sucessos políticos em sua terra.
Em seu país teve destacada atuação, tanto militar como política, pelo
Partido Blanco em disputas internas, tornando-se o líder maior de seu partido e
eminência parda no governo blanco uruguaio. Recebeu o apelido de “Aquila
Branca” (Águia Branca), por usar, quando em combate, um pala branco.
Comandou a Revolução Blanca, no Uruguai, também chamada de “Revolucion
de las Lanzas”, em 1897, que terminou com a assinatura da “Paz de Abril”, com a
existência de dois governos: Cuestas, colorado, em Montevideu e um blanco, com Aparício
Saraiva em El Cordobes.
Depois comandou a Guerra de 1904, no Uruguai, contra o governo de
Montevidéu. A “Batalha de Masoller”, a última da guerra, travada na localidade
do mesmo nome, terminou com a debandada das tropas saraivistas após um grave
ferimento de Aparício.
A luta foi desigual. Os governistas tinham armamentos modernos. E
Aparício, ao expor-se cavalgando em frente a suas fileiras, foi alvejado por
uma arma Mauser.
Ferido, foi levado para a estância de dona Luiza Pereira, mãe de
João Francisco Pereira de Souza, seu inimigo na Revolução Federalista, que
ficava a cinco quilômetros da fronteira com o Uruguai.
Neste local, que hoje é área rural de Santana do Livramento, Aparício
morreu no dia 10 de setembro de 1904, devido a complicações de perfuração
abdominal.
Ele foi sepultado no Panteón da Família Pereira de Souza, na
cidade de Santana do Livramento. Em 1921, 17 anos depois da morte, seus restos
foram reclamados pelo povo uruguaio e levados para “Rincón de Artigas”, hoje também
área do município de Santana do Livramento. E em 12 de janeiro do mesmo ano, ao
cemitério de Buceo, em Montevidéu.
POLÍTICOS LEGENDÁRIOS
Aparício foi o último representante de uma era de políticos
legendários de estampa gauchesca no Uruguai. Com ele, findou um ciclo
revolucionário, que começou com a Revolução Federalista de 1893 no Sul do
Brasil, passou pelo conflito Blanco em 1897, no Uruguai e culminou na Guerra de
1904.
É atribuída a Aparício Saraiva a frase: “Prefiro deixar meus
filhos pobres com uma pátria, do que ricos sem ela”.
Aparício Saraiva e Gumercindo Saraiva eram irmãos e tinham
propriedades no Brasil e no Uruguai. Ambos foram importantes para a história do
Rio Grande do Sul.
Gumercindo foi morto na Revolução de 93 e está sepultado em Santa
Vitória do Palmar. Já Aparício, que foi registrado no Uruguai, está sepultado
lá. Eram homens muito ativos, com espírito de guerreiros.
Em novembro de 2011, faleceu em Curitiba (PR), Oscar Cecílio
Saraiva, 83 anos, filho de Aparício Saraiva e Ida Nemtz Saraiva.
Na etapa revolucionária de 1893 a 1904 Aparício Saraiva foi o
grande condutor dos conflitos políticos na fronteira. No que tange à conexão
com os federalistas, foi grande estrategista militar responsável pela longa
duração do conflito, ao assumir o lugar de seu irmão Gumercindo, após a morte
deste.
Tendo sido os acontecimentos no Rio Grande o palco para seu grande
ensaio, é certo que Aparício tornou-se a partir de seu retorno ao Uruguai o líder
incontestável dos blancos da fronteira norte.
Dali liderou os levantes que atormentaram a república vizinha por
quase uma década, assombrando as autoridades de Montevidéu. (Pesquisa: Nilo
Dias - Publicada no jornal "O Fato", de São Gabriel-RS em 25/10/2017))
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