quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Dom Vives, polêmico e folclórico

Luiz Alberto Vives era uma daquelas pessoas que se poderia chamar tranquilamente de “figuraça”. Quem o conheceu sabe bem porque digo isso. Como todo o uruguaio que se preza, era dono de um gênio nada fácil. Gente boa, coração de ouro, mas não tolerava que mexessem com ele.

Sei disso, porque certa vez senti muito de perto a sua ira. Dom Vives, como era mais conhecido, treinava a S.E.R. São Gabriel, time da cidade, na época. E depois de uma fase de insucessos, em que o time não ganhava de ninguém, eu, que era o presidente do clube, o demiti por telefone.

E para que? Dom Vives virou uma fera e foi para a rádio São Gabriel onde falou “cobras e lagartos” a meu respeito. E hoje confesso que foi merecidamente. Eu deveria ter ido a sua casa, no Bairro Siqueira, como fiz quando o convidei para ser o técnico, para dizer-lhe que estava demitido.

Mas passado o impacto inicial, a amizade voltou intacta e durou até o dia em que Deus o levou. Seguidamente eu o visitava em sua casa no Bairro Siqueira e batíamos longos e agradáveis papos. Vives era um homem culto, sabia de tudo um pouco.

Uma ocasião até lhe pedi que colaborasse na tradução de textos em espanhol, para um jornal de cunho turístico que a Prefeitura, no tempo do prefeito doutor Eglon, estava confeccionando para distribuição aos uruguaios que por aqui passavam, e ainda passam no período de verão com destino às praias, especialmente do litoral catarinense.

Dom Vives nasceu no dia 9 de setembro de 1920, na cidade de Frey Bento, no Uruguai, a mesma em que veio ao mundo o saudoso goleiro George Geóvio, que brilhou no G.E. Brasil, de Pelotas. E faleceu em São Gabriel, no dia 17 de janeiro de 2003, aos 83 anos de idade, depois de ficar internado no hospital da Santa casa devido a uma pneumonia.

Dom Vives antes de ser treinador foi jogador de futebol, tendo defendido a camisa do C.A. Penãrol, tradicional agremiação esportiva de Montevidéu.

Ao vir para o Brasil, jogou no extinto Nacional, de Porto Alegre. Encerrou a carreira jogando pelo Cruzeiro, de São Gabriel, em 1954, depois de sofrer uma grave lesão, que deixou marcas que o acompanharam por toda a vida.

Nesse mesmo ano começou a treinar o Cruzeiro, onde conquistou muitos títulos de campeão da cidade e regional. Na época o time era chamado de “Fantasma dos Pampas”.

Em 1955 e 1956, o Cruzeiro foi terceiro colocado no campeonato estadual. Ainda foi técnico da também extinta S.E.R. São Gabriel, em 1988.

Ele guardou com carinho recortes de jornais da época em que era jogador, tendo enfrentado o famoso e lendário “Cardeal”, que brilhou no Regimento, de Pelotas, campeão gaúcho de 1935, Fluminense, do Rio de Janeiro, Nacional, de Montevidéu e Seleções Gaúcha e Brasileira.

Também enfrentou o grande craque Tesourinha, do Internacional, Vasco da Gama, Grêmio e Seleção Brasileira.

Depois que o Cruzeiro parou as atividades, trabalhou de operador de som na Rádio São Gabriel, no tempo do gerente Zenon Figueiró Martins.

Dom Vives, além de folclórico era supersticioso. Ia aos jogos sempre com a mesma camisa, desde que vitoriosa. Costumava receber os jogadores de seu time, em especial do Cruzeiro, no portão de entrada do estádio. E passava mel nas chuteiras de cada um.

Como técnico era exigente. Uma de suas “vítimas” em dias de jogo era o veloz atacante Zezo, de saudosa memória. Ele contava que em certa ocasião Vives não parava de gritar, orientando o seu posicionamento em campo.

O jogador não aguentava mais toda aquela gritaria, rezando para que o primeiro tempo acabasse logo, pois na segunda etapa estaria no lado oposto do técnico.

Mal começou a etapa final do jogo, Zezo corria pela lateral do campo, quando ouviu uma voz: “Corre, te posiciona mais a frente”. Era Dom Vives que mudara de lugar, para seguir infernizando o jogador.

Esta foi a Ana Rita Focaccia que me contou, talvez tenha ouvido de seu pai. Num determinado jogo, Dom Vives se postou atrás da meta do goleiro Paraguaio, do Cruzeiro, quando de um pênalti contra seu clube. E surpreendentemente gritou em claríssimo castelhano:

"No te muevas". Ninguém entendeu porque ele disse isso. Houve até quem achasse que Vives queria perder o jogo. Ana Rita o conheceu muito bem, pois o treinador costumava ir com seu pai, o glorioso doutor Dagoberto, passar merecidas férias na propriedade da família no Suspiro.

Dom Vives montou um belo time de futebol no E.C. Cruzeiro, que tinha no médico militar doutor Vicente Astarita o seu grande dirigente.

São muitas as histórias que contam até hoje a respeito do doutor Astarita, algumas verdadeiras, outras nem tanto. O decano dos radialistas gabrielenses, doutor Dagoberto Focaccia, com certeza guarda em sua memória coisas quase inacreditáveis a respeito desse dirigente, que se tornou uma verdadeira lenda no nosso futebol.

O time estrelado nesse tempo era uma verdadeira maquina de jogar futebol. Uma de suas melhores escalações foi esta:

Paraguaio, que mora em Montenegro (RS); Portuário e Ducos, este pai de Carlos Alberto Ducos, que presidiu o G.E. Bagé; Orly, Caboclo, que fixou residência em São Gabriel e foi até “Cidadão Gabrielense”, por determinação da Câmara Municipal. E Cléo, que depois brilhou no Pelotas e Grêmio Porto Alegrense. E mais tarde Laerte, expoente de uma família de grandes craques e um ataque demolidor: Zezo, Nestor, Zizinho, Flávio e Gaiola.

Também jogaram com Dom Vives ou foram dirigidos tecnicamente por ele grandes jogadores do passado como Camejo, Velho, Pipoca, Lacerda, Léo, pai do amigo Eduardo Petrarca Léo e Salvador (que fez parte da famosa linha média do Internacional, de Porto Alegre, ao lado de Oreco e Odorico), entre outros.

A chegada do craque ao estrelado gabrielense foi bastante concorrida, com desfile de carro aberto pelas principais ruas da cidade e espocar de foguetes pelos enlouquecidos torcedores cruzeiristas.

O saudoso poeta riograndino, Raimundo Anselmi, na sua publicação “Brincadeiras do Anselmi”, homenageou o E.C. Cruzeiro, em 1956. Publico apenas dois versos, que mostram bem o que foi a bonita homenagem:

Abro a gaita despilchado/Nesta cidade altaneira/Para saudar sua gente/E o Fantasma da Fronteira.

Com menos de quatro anos/Já tem vários campeonatos/Faz de tudo esse Cruzeiro/Só não faz espalhafatos.

Eu não morava mais em São Gabriel quando Dom Vives morreu. Mas fiquei sabendo de sua partida para o outro lado, por informações de amigos. Fiquei muito sentido, pois era seu amigo de verdade e gostava muito dele.

Com certeza com Vives se foi um período histórico e romântico do futebol de São Gabriel, que chegou a ser chamado de “El Dorado”, em razão da organização dos clubes e dos bons salários pagos, dinheiro vindo do “milagre do trigo”.

Depois desse período o futebol local chegou a conhecer momentos de relativo sucesso, mas nada que pudesse ser comparado aos tempos de Cruzeiro, Gabrielense e Dom Vives. (Pesquisa: Nilo Dias)

Time de Futebol de Salão da Rádio São Gabriel, campeão de 1961 no Torneio promovido pela Liga Gabrielense de Futebol de Salão. Eis aí um timaço: Zenom Figueiró Martins, Dom Vives, Léo, o craque número um, pai de Eduardo Petrarca Léo, o famoso goleiro Oswaldo Nobre e Antônio Paulo. Um grande time, o tempo passa. (Fonte: "As 10 Mais de Dagoberto Focccia", enviada pelo amigo Carlos Eugênio Benavides, através o amigo comum Bereci da Rocha Macedo)

Um comentário:

  1. Saudoso fico. A história e a fotografia... sou o primogênito do goleiro Paraguaio, hoje com 86 anos e oficial do Registro de Imóveis de Montenegro RS. Todas essas pessoas da rádio São Gabriel nos são amadas, inesquecíveis .Obrigado, companheiro Nilo. Dom Vives merece ser eternizado nas tuas letras.

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