sábado, 6 de janeiro de 2018

O mais novo escritor gabrielense

O amigo Roque Palermo, gabrielense, lançou ano passado na Feira do Livro de Porto Alegre, o seu primeiro livro, que tem por título "Gaudério Laudelino".


É, portanto, mais um filho da terra que se lança na literatura com temática gaúcha. Abaixo, o conto "Cancha reta”, que faz parte da obra.

Gaudério Laudelino há três dias e três noites não arreda o pé da carpeta. Tudo pode acontecer. Dos seis que iniciaram o jogo, numa quinta-feira, restam dois, e os dois maiores desafetos da região.

Gaudério Laudelino e o Libório, estancieiro, que chegou há pouco tempo, comprou sesmaria de campo (com dinheiro havido ninguém sabe como) da viúva do finado coronel Marino, morto por essas coincidências da vida numa mesa de jogo (Se perdeu o baralho novo de tanto sangue que jorrou).

Laudelino está cansado, sente o peso destes dias no lombo. Não quer dar sinal de fraquejar, garganteia:

– Ninguém sai!

O outro retruca:

– Ninguém sai!

Libório com a mão no queixo, movimenta os dedos de vagar. Laudelino que bem observa os gestos do rival, provoca:

– Pensando na bezerra desmamada, parceiro?

O Homem, que não tira os olhos das cartas, nem para de esfregar o queixo, ergue uma pestana chuleia o Laudelino, um olho aberto outro fechado. O Gaudério, como se nada visse ao seu redor, além das cartas bêbadas que tem nas mãos, pensa:

–Será que o maula tá pifado?

Num repente o silêncio se rompe. Antes só quebrado pela respiração ofegante da plateia, em volta da mesa, e o borbulhar da canha caindo no copo.

Fala o Libório:

– Laudelino pelas minhas contas, não estou perdendo nem ganhando, tu deves estar com as fichas dos que levantaram, te proponho disputar la negra nas patas dos cavalos, meu picaço contra teu Zaino, quem ganhar leva o cavalo.

Laudelino, com toda calma do mundo, com a mão esquerda a enrolar e desenrolar a ponta do bigode, com a direita gesticula como se fosse bater, num repente para e fala:

– Amigo, com todo respeito, teu cavalo não vale a metade do meu (mas pra que dizer uma coisa dessas).

Libório levanta num salto, a cadeira vai parar no meio do salão e a adaga surge nas fuças do Laudelino. E grita:

– Repete se for homem!

Laudelino, impassível, diz:

– Sossega, não estou desfazendo do teu cavalo e sim valorizando o meu, e tem mais, aceito o desafio, mas jogo meu pingo nas patas da minha gateada.

Atada a carreira para o domingo, na cancha do Zezeca. Que fica ali na Vila Saican, à esquerda da estrada que vai para a Estação Corte.

A notícia se espalhou pela região, que nem labaredas correndo solta em pasto seco. Veio gente dos arredores: gente da Capela, do Caverá, São Simão e muitos cueras do Cacequi.

15 horas da tarde, de um domingo ensolarado, tiveram o cuidado de varrer os trilhos da cancha com vassoura de guanxuma. Tudo preparado.

Montando a gateada o rapazote Onofre, peão da estância do Quero-Quero, e aprendiz de treinador, que a pedido do Laudelino, mantém a eguinha no trato, escondida de todos pronta para qualquer ocasião.

O picaço, babando no freio, suando como condenado, denota que lhe deram algo além de ração. Montado pelo Libórinho, filho do Coronel (o homem não confia em mais ninguém).

O Barulho é grande, por fora as apostas de última hora são feitas aos gritos:

– Cem mango nas patas da gateada! Aceito! Os ponchos estão forrados; quem ganhar leva tudo.

Canha e pastel não há que chegue, litros e balaios são esvaziados em pouco tempo. O juiz do partidor, homem sério e respeitado por todos, usa o próprio lenço para sinalizar a largada.

Se vieram! O grito saiu de mil bocas, como se fosse uma só. Pouca gente viu o relhaço que Libório desferiu na cara do jovem Onofre (novo, mas precavido) desvia o rosto e ainda grita:

– Perdeu tempo, cuera, já vai comer poeira.

Até os cem metros e pico correram parelhos, a multidão ululava. Já ao cento e cinquenta a gateada tirou orelha, daí em diante o picaço vai perdendo: de fiador, de paleta, de virilha e perde de corpo inteiro. Vence a gateada de Luz.

O Laudelino, tarde da noite volta ao rancho, ao montar, estranha que o cavalo le negue o estribo: uma, duas vezes. Não bobeia, Zaino, capaz de perder eu confio nas patas da gateada. E chega de trupicá.

O picaço, vai a tiro.

O Lobo, que de perto acompanhou tudo, segue poucos metros à frente, abanando o rabo.

E agora a apresentação do livro feita por Alcy Cheuiche:

UM PERSONAGEM PARA CONQUISTAR O NOSSO IMAGINÁRIO

Se alguém colocasse um gravador na Academia Rio-Grandense de Letras, que abrigou nossa Oficina de Criação Literária durante este ano, iria degravar somente comentários positivos dos alunos escritores (e algumas gostosas gargalhadas) cada vez que um dos contos deste livro era lido pelo autor.

E isso sempre me encheu de orgulho. Se personagem literário fosse batizado, eu iria brigar para ser o padrinho do Gaudério Laudelino. Mas que o pai dele é o Roque Palermo, isso eu posso jurar para vocês (ou simplesmente oferecer um fio do meu bigode como testemunha).

Cada conto é aqui narrado no linguajar comum do peão de estância, com o sabor antigo de causos, meio verdades, meio mentiras, em volta da roda do chimarrão. Laudelino é o personagem principal, mas não esperem dele nenhuma façanha.

Seja na lida do dia a dia, nas bailantas ou em alguma guerra ou revolução, age sempre com as manias, virtudes e defeitos dos nossos gaudérios de todos os tempos. Por isso o autor o desloca de um século para outro sem dar explicações para ninguém.

Laudelino conversa muito, trabalha pouco e se diverte como pode. Só tem de seu a companheira Maria, o cavalo zaino e o cusco Lobo, que, igual ao dono, não é bobo para enfrentar todos os perigos.

Gaudério Laudelino é tão autêntico, que não vai tardar a incorporar-se ao imaginário brasileiro do Sul. Leitores dignos deste livro é que não faltam entre nós. A verdade é que Roque Palermo, graças ao seu talento e vivência profissional no campo, conseguiu um feito raro nos tempos atuais.

Depois de um século do nascimento de Blau Nunes, outro campeiro digno desse nome volta a cavalgar por nossa literatura. Neste caso, um gaúcho bem mais simples, mas tão real como o emblemático personagem de Simões Lopes Neto.

Um comentário:

  1. O Roque Palermo sempre foi esse gauderio de pequeno com puco mais de 1 ano quis seguir os irmãos em uma atividade fora de casa em dia chuvoso e por pouco não ficou em um poço de água ... tem essa historia Laudelino? ... Esse conto esta muito bom parece que estou ouvindo as historias de crianças na Vila de Corte.. Agora falta voltar as tirinhas que fazias ... serão também muito boas ...

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