Encravada entre São Gabriel, Santa Maria e Cacequi, localidade de
nome curioso inspira lendas e controvérsias históricas que perpassam os séculos
e algumas das guerras mais sangrentas do Rio Grande do Sul.
A primeira acepção de “pau”, em qualquer dicionário da língua portuguesa,
vai ser a de pedaço de madeira, lenho, acha. Umas linhas abaixo, na segunda ou
terceira definição, o verbete também trará um significado mais chulo – esse
mesmo que você está pensando.
Já a palavra “fincar”, no pai dos burros, remete à ideia de inserir,
introduzir, meter com força.
O que seria, portanto, um pau fincado? Um tronco cravado em alguma
superfície? Uma cena imprópria para menores? Para os propósitos aqui
pretendidos, não será nem uma coisa, nem outra. Fica desde já combinado que Pau
Fincado é uma localidade bucólica, com séculos de história, que fica no
interior do município de São Gabriel.
E, de fato, há lá um pau. Grosso, rugoso, comprido, uns dizem que
de guajuvira, outros aventam tarumã. Ele está mesmo fincado, ereto, em um
barranco à beira da BR-158, a meio caminho entre Santa Maria e São Gabriel. Tem
cerca de dois metros de altura, sem contar a parte que penetra terra adentro.
Alguns garantem que se trata de um marco com mais de 250 anos, do
tempo em que minuanos, charruas, jesuítas, espanhóis e portugueses se
engalfinhavam, disputando a posse do que viria a ser o Rio Grande do Sul.
Outros sustentam que se trata apenas de um sinalizador de divisa entre
municípios. Há versões diferentes sobre quem o colocou ali e o porquê, mas todos
concordam num ponto: foi do pau que veio o nome da localidade gabrielense.
Não é história recente. Pelo menos desde a primeira metade do
século 19, a zona já era conhecida por esse nome, confirmando que o pau está
fincado há muito tempo. O médico Douglas de Morais Garcez, 65 anos, que
investiga o tema há cerca de 15 anos e sugeriu esta reportagem, cita concessões
de sesmarias lavradas a partir de 1806 que já tomam o Pau Fincado como ponto de
referência.
Perto do toco transcorreram episódios da Revolução Farroupilha,
mencionados em documentos da época. Em 1842, para dar um exemplo, o general
Bento Gonçalves enviou uma carta a José Pinheiro de Ulhoa Cintra, ministro
plenipotenciário da jovem República Rio-grandense junto ao governo de
Corrientes, para relatar os sucessos recentes da guerra: “O general Canabarro,
com o 2º corpo do Exército, ocupa o Pau Fincado e suas imediações, e conserva
algumas forças pelo Rosário”, informou.
Naquela época, terras dali pertenciam, aliás, a um ilustre
farrapo, o estancieiro Luís Gonçalves das Chagas (1815-1894), mais tarde
agraciado por Dom Pedro II com o título de Barão de Candiota. Natural de São
Gabriel, Chagas tinha apenas 21 anos quando participou da célebre “Batalha do
Seival”, em 1836. Também ficou na história por ter se negado a cumprir ordens
do general Antônio de Souza Netto para fuzilar prisioneiros legalistas. Acabou
afastado da tropa e foi cuidar da vida.
A partir da década de 1840, amealhou glebas que se espalhavam
pelos atuais municípios de São Gabriel, Santa Maria, São Vicente do Sul, Lavras
do Sul, Bagé, Pinheiro Machado e Candiota. Conforme o jornalista e escritor
Roque Callage (1886-1931), Chagas podia percorrer os quase 200 quilômetros
entre Santa Maria e Bagé sem sair das suas terras. Entre elas figurava o Pau
Fincado.
No livro Trilogia da Campanha: Ivan Pedro de Martins e o Rio
Grande Invisível, de Antônio Hohlfeldt, fala-se mesmo em um certo Barão do Pau
Fincado. A dada altura, em um dos apêndices da obra, Hohlfeldt reproduz uma
gravação deixada por Martins, um importante escritor gaúcho (era de Minas Gerais),
sobre sua imersão na literatura:
“Ainda depois, já escapado das malhas que tentavam a minha prisão
no Rio, é na biblioteca de um descendente do Barão do Pau Fincado, Atibaia
Azambuja, em São Gabriel, que eu venho a devorar os escritores clássicos gregos
traduzidos para o francês”, diz ele. Seria Luís Gonçalves das Chagas? Na página
dedicada ao estancieiro gaúcho, a plataforma de genealogia “My Heritage” traz a
identificação “Barão de Candiota (Barão do Pau Fincado)”.
GUARDIÃO INFORMAL
Ao que parece, até mesmo Dom Pedro II pode ter contemplado o pau,
possivelmente levado por Chagas. Quando a Guerra dos Farrapos acabou, o monarca
fez questão de viajar ao Rio Grande do Sul para vistoriar a província
pacificada, e hospedou-se em São Gabriel, em janeiro de 1846.
Mas não teria sido dessa vez que viu o pau, só duas décadas
depois, em agosto de 1865, quando voltou para acompanhar as manobras militares
da Guerra do Paraguai. Envolvido na refrega, Chagas recebeu o imperador e
providenciou escolta para ele até Uruguaiana. Mas houve uma festa campeira de permeio.
Conforme o artigo “Representações do Pampa nas Paisagens Rurais e
Culturais”, assinado por Nara Rejane Zamberlan dos Santos, Nastaja Cassandra
Zamberlan dos Santos e Caroline Ciliane Ceretta, “a Estância da Caieira sediou
a capital da República Rio-grandense (1841), bem como recepcionou Dom Pedro II
e organizou uma festa campeira, sendo considerada a primeira festa tradicional
do Rio Grande do Sul, assim como a do Pau Fincado recepcionou o monarca.
Hoje, essas propriedades não existem mais, sendo considerados mais
de 200 anos de sua fundação, dando lugar às plantações de eucaliptos. O Barão
de Candiota (Luiz Gonçalves das Chagas) mantinha também as propriedades “Santa
Lorena”, “Espinilho” e “Mascarenhas”.
Com todo esse pedigree, é irônico que hoje em dia a “Pau Fincado”
não possa ser mencionado sem que risotas zombeteiras brotem nos lábios e piadas
de duplo sentido pipoquem uma após a outra.
Também surpreende que, apesar do aparente valor histórico e
simbólico, não tenha qualquer placa informativa e fique aos cuidados de um
guardião informal. Ele é o trabalhador rural Januário Santos da Silva, 47 anos,
que mora bem em fronte à tora e, por isso, dá a ela alguma atenção, ainda que,
quando questionado se cuida do pau, solte o indefectível risinho e tire o corpo
fora: – Eu não! Cuido nada!
Mas a verdade é que, quando notou haver morcegos vivendo dentro do
toco, onde entraram por uma rachadura, Januário expulsou-os com veneno. E, ao
perceber que a terra do barranco podia ceder, arriando o pau, bolou um
estratagema para mantê-lo em guarda, firme: enfiou um velho pneu até a base,
ajudando a fixá-lo no solo. Preocupado, lamenta que a madeira esteja a
apodrecer e defende que seja besuntada com algum tipo de produto que a mantenha
viçosa.
Com frequência, Januário costuma recepcionar curiosos que aparecem
com o objetivo de admirar o tronco célebre: – As pessoas chegam de carro, tiram
fotos. Tem uns que param e perguntam: “Onde é que fica o pau?”. Eu digo: “Mas é
esse aí”. Acho que esperavam mais.
A única placa nas proximidades foi colocada pela mulher de
Januário, mas não ajuda a sinalizar o marco ou a enobrecer sua importância
histórica, apenas cria um ambiente cômico e multiplica as piadas.
Com tino comercial, ela espetou no barranco à beira da estrada,
bem ao pé do lenho, o letreiro com os dizeres: “Vende-se ovos” – com o
probleminha de concordância e tudo. Januário parece se dar conta da estranha
combinação pela primeira vez e cai na gargalhada. – Pau com ovos! Ficou
engraçado – reconhece.
Apesar de saber da relevância do tronco, e cuidar dele, o morador
mais próximo demonstra não ter uma ideia muito clara de como ele foi parar ali:
– Os mais velhos falavam que era um marco, diz que era do tempo
antigo, que não podia mexer. Que era do tempo de não sei de quem, durante a
guerra. Que botavam um marco para os cavaleiros saberem qual era o caminho que
deviam seguir. Também falavam que era para a divisão dos municípios.
TRÍPLICE FRONTEIRA
Diante dessas afirmações pouco esclarecedoras, era prudente
procurar um morador de tempos mais remotos, que pudesse conservar relatos
ancestrais. A pessoa indicada parecia ser Naldivo dos Santos da Silva, que
nasceu no “Pau Fincado” e passou seus 78 anos de vida na localidade.
– Nasci aqui, me criei aqui e nunca saí daqui. Sou dos mais
antigos. O que sei é que tem aquele pau ali desde que me conheço por gente –
conta Silva, diante de sua casa modesta, em uma propriedade de 10 hectares que
ele diz ter obtido através de um processo de “usucampeão”.
Sentado à frente da residência, ele desenha com o dedo, no chão, a
geografia da zona e vai explicando que o tronco está no local para marcar a
separação entre municípios:
– Aqui é a faixa. Aqui é aquela entrada que vem para a faixa. Aqui
o senhor entra. Aqui é o pau, Então aqui é São Gabriel, aqui é Cacequi e aqui é
Santa Maria. Esse pau é a divisa dos municípios. São Gabriel, Santa Maria e
Cacequi.
Para tirar a dúvida, seria prudente consultar alguém enfronhado na
história local, mas o historiador gabrielense de referência, Osório Santana de
Figueiredo, morreu em agosto passado, aos 91 anos.
Restou a alternativa de consultar os livros que ele publicou. O
mais significativo deles talvez seja “História de São Gabriel”, um cartapácio
de meio quilo e mais de 300 páginas. A obra, de fato, traz uma passagem sobre a
procedência do marco, mas ela aparece apenas nas páginas finais, em um seção
intitulada “Origem de Alguns Passos e Locativos do Município”. É breve e não
traz nenhuma indicação de fontes:
“Pau Fincado: Distrito de Tiaraju. Poste de madeira cravado pelos
jesuítas e que servia como ponto de referência para o caminho da Colônia do
Sacramento. Após encontrá-lo, buscavam o Cerro do Batovi, depois Santa Tecla,
até seu destino, e vice-versa. No local ainda existe um pau fincado, em
substituição ao primitivo moirão dos missioneiros.”
Como se sabe, nos primórdios da colonização do continente
americano, padres jesuítas estabeleceram três dezenas de aldeamentos em regiões
ao longo dos rios Uruguai e Paraná, em áreas que hoje fazem parte do noroeste
gaúcho, do nordeste da Argentina e do sul do Paraguai.
As missões, contudo, tornaram-se presa de bandeirantes que vinham
de São Paulo, o que levou os padres a esconder o gado em zonas mais
meridionais, conforme relata o historiador Aristóteles Vaz de Carvalho e Silva
no volume “São Gabriel na História”:
“No longínquo ano de 1636, após as incursões dos bandeirantes
Antônio Raposo Tavares, André Fernandes e Fernão Dias Paes (o “Caçador de
Esmeraldas”), que destruíram sucessivamente as reduções jesuíticas do Guairá,
do Tape e de Jesus Maria, resolveram os jesuítas estabelecer estâncias, postos
e povos destinados ao pastoreio do gado mais para o interior da campanha, em
regiões somente conhecidas de raros peões e dos índios, onde sabiam ser as
pastagens e aguadas magníficas para o restabelecimento dos rebanhos
missioneiros”.
A chamada “Vacaria dos Padres” estendia-se da margem sul do Rio
Jacuí até o Rio da Prata, incluindo o local onde foi fundada a Colônia do
Sacramento – o que justificaria a explicação dada por Osório Santana de
Figueiredo para a origem jesuítica do Pau Fincado.
Dezenas de milhares de cabeças de gado xucro, o chamado gado
chimarrão, pastavam nessa vasta zona, servindo de reserva para as Missões.
Conforme Carvalho e Silva, uma das principais vacarias era a de São Miguel,
estabelecida em 1637 por dois religiosos e um grupo de índios, que levaram 40
mil bovinos para a região que hoje corresponde ao município de São Gabriel, para
mantê-los fora do alcance dos bandeirantes.
O DOSSIÊ DO PAU FINCADO
Mas será que um tronco de dois metros de altura perdido no meio do
cone sul seria um bom indicador de rota? Onde estão os indícios para sustentar
essa tese? Teriam mesmo os jesuítas sido os responsáveis? O médico Douglas de
Morais Garcez, que teve um antepassado entre os agraciados com sesmarias no Pau
Fincado, não acredita nessa versão. – Isso é só lenda – afirma.
Douglas e o irmão, o professor universitário Pedro Garcez, ficaram
intrigados com as referências à localidade em velhos documentos. Constataram
que ainda existia uma zona de São Gabriel que levava aquele nome e verificaram
a existência, no local, de um pau fincado.
Ao longo de década e meia de pesquisa, o médico convenceu-se de
que o tronco foi colocado, na verdade, por ordem dos monarcas ibéricos,
conforme resumiu em e-mail enviado a ZH, segundo o qual o pau “tem um
significado histórico muito importante, mas ainda não identificado
adequadamente, nem reconhecido, como marco da delimitação de limites entre as
coroas portuguesas e espanholas, em lugar descrito no “Tratado de Madri” e no
poema épico “O Uraguai”, de Basílio da Gama, e que deveria ser reverenciado
antes de tombar literalmente”.
Assinado em 1750, o “Tratado de Madri” redefinia o limite entre as
possessões de lusos e castelhanos na América do Sul. No dossiê que montou sobre
o assunto, Garcez cita a obra “Jesuítas no Sul do Brasil”, de Aurélio Porto,
segundo a qual os trabalhos de demarcação começaram em outubro de 1752.
O médico argumenta que o tratado determinava que certas vertentes
de rios deveriam ser usadas como parâmetro, “a saber, por parte dos domínios de
Portugal, para a banda da lagoa Mirim; e, pela parte dos domínios da Espanha,
para a banda do Rio da Prata”. De acordo com Garcez, essa linha divisória
passava pelo atual “Pau Fincado”, e o pau fincado em si é um dos marcos
colocados para sinalizá-la.
– A comissão sobe procurando as vertentes dos rios e bota um marco
aqui, um marco ali. O “Tratado de Madri” diz que as vertentes que correm para o
oeste delimitam o território espanhol, e as águas que correm para leste, no
caso os rios Jacuí e Vacacaí, seriam portuguesas.
Então os demarcadores subiram o Rio Santa Maria e, quando estavam
chegando perto do Rio Vacacaí, houve a “Guerra Guaranítica”, quando 3 mil
índios das Missões tentaram atacar a comissão demarcadora de limites. Depois da
guerra, a comissão se dissolveu e não ficou registro desse marco do “Pau
Fincado”, que acho que é de 1753.
Quando se dissolveu a comissão, os soldados que faziam parte dela
ganharam sesmarias do governo português, e essas sesmarias foram concedidas
dando como localização o “Pau Fincado” – diz o médico.
A “Guerra Guaranítica”, portanto, teria atrapalhado o
prosseguimento e o devido registro das demarcações. Motivado pelo “Tratado de
Madri” e pela consequente expulsão dos jesuítas e dos índios que viviam sob a
guarda deles, o conflito teve de fato batalhas decisivas travadas na redondezas
do “Pau Fincado”.
O herói Sepé Tiaraju, por exemplo, foi massacrado com cerca de
outros 1,5 mil índios na “Batalha de Caiboaté”, travada no atual território
gabrielense.
No entanto, em seu livro, o historiador Carvalho e Silva aborda um
trabalho demarcatório na zona de São Gabriel realizado quase três décadas
depois do período examinado por Garcez. Ele foi motivado pelo “Tratado de Santo
Ildefonso” (1777), que estabeleceu uma nova delimitação dos setores português e
espanhol.
Segundo o autor, começou então o demorado trabalho de fixação de
limites, “e só em 1784 foram colocados o 3º e o 4º marcos castelhanos nas
cabeceiras do Rio Cacequi e no Cerro do Caiboaté; e os lusos os afixaram em um
braço do Vacacaí e em frente ao citado Cerro, todos eles em território
gabrielense”.
Seja como for, a história do pau tem séculos. E não é desprovida
de aventuras. Em 2008, o “Diário de Santa Maria” noticiou que o tronco havia
sido removido e plantado oito metros adiante, durante a construção de BR-158.
Os moradores não se conformaram e exigiram a recolocação no ponto
original – o que teria sido feito. Mesmo que tenha sido enfiado de novo no
orifício que os jesuítas ou os demarcadores ibéricos escolheram, já não seria
mais o pau de sempre. Quem garante é Naldivo, testemunha de uma grande
movimentação para substituir a peça original por uma nova, episódio ocorrido,
segundo ele, mais de 20 anos atrás:
– O pau estava muito velho. Não dava mais. Daí veio uma caravana,
vieram uns cavalarianos e um caminhão com um pau novo. Tiraram o velho e
colocaram o outro, esse que esta aí, disseram que precisava renovar, porque
aquilo não podia terminar. O antigo eles levaram, não sei para onde foi. O que
eu sei é que aqui é Pau Fincado, desde o princípio do mundo. Ficou o nome. E
vai ser assim até o fim da vida, não é? (Fonte: Jornal "Zero Hora", de Porto Alegre, edição de 3 de fevereiro de 2018 - Texto de Itamar Melo)
Sou de Dom Pedrito,onde temos o Obelisco da Paz, alusão só Tratado da Paz do Ponche Verde, Revolução Farroupilha, que também deve servir de crítica a otários desrespeitosos com a História, que apesar das controvérsias é o resta para ser digno ou não no futuro.
ResponderExcluirMorei em São Gabriel e nunca ouvi,por parte de seus moradores e de pessoas de municípios vizinhos, qualquer deboche e insinuações chulas a respeito do local.
O que se ouve lá é no que Osório Figueiredo escreveu, que soube através de pesquisa até mesmo com descendentes de indígenas que lá vivem.Conhecimento oral,como é comum a esse povo.
Que hoje o marco esteja se deteriorando é natural, talvez por negligência das autoridades,mas daí a acreditar que rede pau foi trocado uma vez só,desde entre 162...e 06.02.1756,data em que Sepe Tiaraju foi abatido por forças espanholas e portuguesas na Sanga da Bica em São Gabriel, é preciso que o "vivente" seja muito imbecil.