As duas primeiras fases, como acontecem em casos semelhantes estão
envolvidas em tênue penumbra, que lhes dá tonalidade de lenda. Entretanto, em
linhas gerais são a realidade dos acontecimentos.
Dom Félix de Azara, nascido no Aragão, em Barbunales, em 1746 era
irmão do diplomata espanhol, Dom José Nicolau de Azara. Dedicando-se aos
estudos de História Natural foi também militar.
Filho de influente família aragonesa estudou nas Universidades de
Huesca e Barcelona, habilitando-se para as carreiras das armas e engenharia,
onde conseguiu ser cadete em 1764. Como engenheiro, construiu o Forte de
Mallorca, um dos pontos turísticos mais conhecidos da Espanha.
E como militar foi enviado para o Prata em 1781, como membro da
comissão encarregada da execução do Tratado de Santo Ildefonso, que havia sido
firmado em 1777.
Dom Félix de Azara esteve 20 anos no Prata, estudando e fazendo
levantamentos científicos, inclusive de cartas da região que percorria,
visitava ou explorava. Numa andança, e nesses estudos e levantamentos, gastou
toda a sua fortuna pessoal, tendo falecido pobre, em Madrid, no ano de 1811.
Entrando no Rio Grande do Sul, na parte que, pelo Tratado de Santo
Ildefonso deveria ser da Espanha, Dom Félix de Azara fundou nos últimos anos do
século 18, entre 1795 e 1800 um povoado indígena que deveria não só marcar o
limite das possessões espanholas, como servir de centro para seus estudos.
Entretanto, nesse último ano, final de 1800, teve de regressar a
Madrid. O povoado, porém, ficou: São Gabriel plantado modestamente, na margem
direita do rio Jaguarí.
Rejeitou, em 1815, a “Ordem de Isabel, a Católica”, em protesto
contra os ideais absolutistas que, então, reinavam na Espanha. Recusou de ser
Vice-Rei do México e morreu em sua terra natal.
A Deputação Provincial de Huesca concede anualmente, em sua
memória, um prêmio ambiental que está entre os mais importantes da Europa.
Félix de Azara é nome de praças, estátuas e avenidas em Buenos Aires,
Montevidéu, Madri, Paris, Assunção e São Gabriel entre outras cidades.
A cidade de Azara, em Misiones, na Argentina, recebeu seu nome em
homenagem ao seu trabalho na região. Uma crista montanhosa na lua foi
denominada de “Dorsum Azara” em sua honra.
O FIM DA SÃO GABRIEL DE AZARA
O movimento de 1801, encabeçado por Borges do Canto, Manoel dos
Santos Pedroso e outros, devolveu-nos a região missioneira. Fez-se sentir,
também no Sul, e a São Gabriel de Azara desapareceu por completo pela dispersão
de seus habitantes, deixando apenas os vestígios do cemitério, da capelinha e
de uma ou outra casa enterrados no solo.
Aconteceu, porém, que em 1791, o vice-rei Conde de Rezende, o
matador de Tiradentes, em Minas Gerais, havia doado a Antônio da Costa Pavão,
por Carta de Sesmaria, três léguas de campo no Caiboaté.
No mesmo ano recebia também a sua Carta de Sesmaria o cidadão José
Maria Corrêa Marques. Estas terras estavam localizadas no Batovi, abrangendo,
ao que parece, a área desde os limites da Sesmaria do Caiboaté até Batovi.
Vasques, entretanto, em 1793, passou parte de suas terras,
justamente a do Batovi, a José dos Santos Menezes – Juca Santos -, que foi um
dos destruidores da São Gabriel de Azara.
Surgiu então, em 1801, a segunda fase gabrielense.
Logo após a demolição completa do povoado de Azara, Juca Santos,
não querendo deixar ao desabrigo os indígenas que haviam aderido, bem como
alguns espanhóis e suas famílias, resolveu fundar em suas terras, na encosta do
Batoví a nova São Gabriel: a São Gabriel brasileira.
Ali arranchou todo o grupo em torno de uma capelinha que mandara
construir pelos próprios habitantes, fornecendo ele o material e o mais que
fosse necessário. E o povoado prosperou, com seu cemitério que ainda existe em
parte no alto do menor dos cerros do Batovi.
Essa capela, com o título de ”Curada” foi criada por Alvará Real
de 28 de novembro de 1815, sendo, assim, legalizada e oficializada a criação do
povoado de José dos Santos Menezes, a nova São Gabriel.
Na realidade, porém, os habitantes do lugar não estavam
satisfeitos com a situação do povoado, e de há muito vinham requerendo terras
para os trabalhadores.
Em princípios de 1813 voltaram a carga, solicitando a Dom Diogo de
Souza, a mercê, nomeando, desta vez, os terrenos em que estava estabelecido
Antônio Alves Trilha, “porque o campo deste homem era grande e o dito não se
apresentou na campanha passada, e portanto, requeremos a benignidade de Vossa
Excelência, haja por bem de ordenar que neste lugar, nas melhores porções
possíveis, segundo o estado dos terrenos, se determine a ereção da Capela de
São Gabriel”.
A PRESENÇA DE MENNA BARRETO
Dom Diego mandou que fosse ouvido o coronel João de Deus Menna
Barreto, que os suplicantes citavam dizendo que “impedimentos de real serviço”
não permitiam que atuasse.
Essa situação foi feita, sendo enviada, com data de 7 de setembro
de 1814, a Dom Diogo de Souza, que por sua vez a enviou ao juiz das Sesmarias
de Rio Pardo, para demarcar a meia-légua em quadro, no lugar pedido pelos
suplicantes para a capela que lhes foi concedida.
Esta ordem trazia a data de 16 de dezembro de 1813, mas deve ser
de 1814, conforme o documento anterior, a não ser que haja algum outro no mesmo
sentido, extraviado do processo “Autos de Demarcação”.
Foi em dezembro de 1814 que começou o “Auto de Demarcação” com o
termo da justificação de corda e agulha, continuando, no mesmo dia, com o “Auto
de Medição”, e concluindo, ainda no mesmo dia, com o “Termo de Declaração”,
dando por liquidado o assunto, e o terreno liberado sem contestação de Antônio
Alves Trilha.
Todo o trabalho de medição e posse foi acompanhado, além do juiz
das Sesmarias, capitão Paulo Nunes da Silva Jardim, pelo piloto do juízo, João
José da Câmara, “ajudante da corda”, Manoel Pereira do Couto, o escrivão Albino
Francisco de Bem e o porteiro nomeado e juramentado José Eleutério, que por
sinal assinou em cruz, por não saber ler nem escrever. Mais os representantes
dos peticionários, brigadeiro João de Deus Menna Barreto e Tomé Francisco da
Silveira.
Finalmente, a 2 de fevereiro de 1815, o Juiz das Sesmarias enviou
seu julgamento, mandando que se desse sentença do processo aos mesmos autores
para lhes servir de título. Que tomassem posse do referido terreno:
condenava-se ao pagamento das custas.
Assim, na realidade o Alvará de 28 de novembro de 1815 criou a
“Capela Curada de São Gabriel” na terceira povoação, mas que somente foi
instalada em 1817.
Os moradores entraram em solene procissão tendo a frente os
insistentes peticionários João de Deus Menna Barreto, José Pinto da Fontoura,
Manoel Eusébio Valente, Simão Gonçalves, Manoel Gonçalves da Trindade e Tomé
Francisco da Silva.
Infelizmente não foi guardado o dia e mês dessa simbólica
transladação da Capela de São Gabriel e seus antigos moradores seguindo a
imagem do patrono, retirada do pequeno templo.
Data de 1817, praticamente, a instalação da atual cidade de São
Gabriel, no local em que está hoje, se pudermos tomar por base o documento que
deu posse do terreno aos peticionários: 2 de fevereiro de 1815.
O fato é que a localidade, melhor escolhida, em terrenos mais
amplos, com mais aguadas e maior horizonte, desenvolveu-se extraordinariamente.
UMA ÁREA HISTÓRICA
E fato curioso, ficou dentro de uma das áreas mais históricas do
Rio Grande do Sul, a do Arroio da Bica, hoje reduzido quase exclusivamente a
uma fonte, onde foi morto em 7 de fevereiro de 1756, o herói defensor da terra
rio-grandense, Sepé Tiaraju.
Estes campos de Caiboaté pertenciam ao estancieiro Rolino Leonardo
Vieira, que fez erigir no local da batalha de 10 de fevereiro de 1756, um marco
comemorativo, à beira da Estrada Real para Cacequi. O território de São
Gabriel, portanto, é absolutamente histórico em cada palmo de sua extensão.
As estâncias, sede das propriedades ostentam seu passado de glória
onde os proprietários se apropriaram das paisagens estépicas e lhe deram
destinação própria para a pecuária.
Estas propriedades evidenciam características arquitetônicas e
mobiliário e objetos artísticos que imprimem o poderio outrora destes locais,
mas principalmente, registram a própria história não só familiar, mas política,
social e econômica.
O município conta com duas propriedades na sede, oito estâncias no
distrito de Vacacaí, 17 no distrito de Batovi, 15 no distrito de Suspiro, três
em Cerro do Ouro, cinco em Catuçaba, 18 no distrito de Tiarajú, e 16 no
distrito de Azevedo Sodré, totalizando 84.
O reduzido número de propriedades rurais na sede do município
deve-se ao fato que a fundação de São Gabriel iniciou no Batovi, posteriormente
tendo a vila queimada e onde se situavam as maiores extensões de terras e a
presença de estâncias.
A sede foi a terceira São Gabriel que foi elevada a cidade em 1859
e, possivelmente deveu-se ao processo de urbanização que se instalava à época o
afastamento das propriedades rurais que tinham a necessidade de extensas áreas
para as atividades pastoris.
Destaque também para as estâncias históricas, antigas e
tradicionais de Santa Margarida do Sul (ex-distrito de São Gabriel) com 12
propriedades rurais.
A peculiaridade de se tratar de um município de cunho rural
justificaria toda e qualquer proposta de preservação deste patrimônio cultural
material embreado de uma cultura imaterial traduzida pelas lidas, gastronomia e
lendas.
Os distritos de São Gabriel apresentam uma riqueza de construções
que passaram de geração a geração e que foram palco de grandes eventos
históricos e que continuam no imaginário popular através de lendas e crenças.
(Continua na próxima edição. Testo e pesquisa: Nilo Dias. Publicado no jornal
"O Fato", de São Gabriel-RS, edição de 7 de fevereiro de 2008)
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