domingo, 23 de junho de 2019

O medo da canoa

Doutor Gérson Barreto de Oliveira
Médico Nefrologista da Santa Casa de São Gabriel

Não são poucos os pacientes que reclamam na hora de se fazer uma ressonância magnética, ou até mesmo uma tomografia computadorizada. O ficar imóvel deitado numa maca estreita dentro de uma câmara com luzes e sons deixa muitos verdadeiramente incomodados, e alguns em estado de pânico.

Os hospitais e centros de imagem tem investido em deixar o ambiente o mais confortável possível, e os fabricantes destas máquinas tentam diminuir os sons emitidos, e há tampões para as orelhas que são distribuídos antes de se entrar na sala para realização do exame.

As pessoas que desenvolvem um grau alto de ansiedade são orientadas a apertar um botão ue faz com que tudo seja interrompido, pondo por água abaixo as tentativas de diagnóstico.

Lá por volta do ano de 1988, morando em Porto Alegre, eu tinha que ligar para casa do orelhão da esquina. Na minha época de estudante, para me comunicar com meus pais em Bagé, era necessário ir a local onde houvesse telefone púbico, e esperar na fila. Sim havia fila para se ter acesso a um simples telefone, e ligava a cobrar.

Meu pai numa noite me deu uma incumbência de ir ver como passava uma das irmãs da minha avó, internada para fazer uma cirurgia de ponte de safena no Instituto de Cardiologia.

Até 1980, o mais difundido para quem tinha placas de ateroma (gordura), ocluindo 70 % de luz dos vasos que irrigam o coração, era a cirurgia de ponte de safena, hoje superada pela angioplastia com o implante de stent (popularmente chamados de "molinhas).

A cirurgia é traumática por ter a cavidade torácica aberta. Atualmente só é indicada quando a colocação de stent não é mais viável.

Tia Joana era um doce de velhinha, espetacular cozinheira como todas Bianchetti. Seu quitute mais admirado era o bolinho frito de batata, uma coisa de bom. Recheado com um guisadinho de carne bovina picada à mão, com salsinha e ovo, recoberto pela massa que a base era a batata. Frito, criava uma casquinha leve e crocante, e tudo se desmanchava na boca em duas mastigadas.

Pois chego na recepção da UTI, onde ela se recuperava, e me apresento como sobrinho e estudante de Medicina. Tia Joana já escutara que indagavam por ela, através de um vidro que separava seu box dentro da UTI e me abanava entusiasticamente.

Mais alguns dias diante da surpreendente recuperação, foi liberada para o quarto e voltei para vê-la. Comecei a rir ao entrar, haviam caixas plásticas com bolinhos de batata e pastéis, nem um pouco discretos disfarçados por panos de pratos alvos como toalhas de banquete.

As netas que cuidavam dela começaram a rir também: "sabes como é Bianchetti, nem é para comer, mas ela adora distribuir para todo mundo que chega, e todos gostaram da função, vem do residente ao funcionário da faxina na hora do almoço, e nós temos que nos desdobrar em fazer em casa à noite para trazer no outro dia".

A paciente há tao pouco tempo operada, que há muito custo conseguiam manter deitada me exclamou: come um pelo menos, e uma coisa te digo a cirurgia foi como se um trem passasse no meu peito, e eu aguentei, só não me coloquem naquela canoa de novo", dizia ela.

Eu não entendi, na UTI ela já tinha falado da tal canoa. Na sua ingenuidade pitoresca, aliada ao alivio de em breve ir para sua casa em Bagé, tinha denominado a maca, que se movimentava para fazer a tomografia, de canoa, que dera mais medo do que todos os riscos de uma cirurgia de ponte de safena. (Matéria publicada no jornal "O Fato", de São Gabriel-RS, edição de 19 de junho de 2019)


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