sábado, 27 de abril de 2019

A dona Niobes

Doutor Gerson Barreto de Oliveira
Médico nefrologista da Santa Casa de São Gabriel

Vou lhes falar algo importante. Não percam tempo encontrando desculpas esfarrapadas: o cigarro devasta! E quem envelhece fumando vai morrendo aos pouquinhos, sofrendo. Todos nós vamos morrer um dia. Mas morrer implorando por ar é uma realidade lamentável.

Dia desses observei de relance dois pacientes que estavam conversando do lado de fora do Posto de Saúde, ao qual eu chegava. Um deles, um homem grande com cara de poucos amigos, fez algo que me deixou pesaroso. Ao me ver ele simplesmente fechou rapidamente a mãozarrona de gaúcho, curtida pela lida, com o cigarro aceso!

Ao ser pego em flagrante pelo médico que iria atendê-lo no ambulatório ele preferiu queimar a mão, e não os ouvidos. Nada falei somente ao final da consulta soltei um alerta de duas palavras: “pare de fumar”. Saiu sério sem dar uma palavra.

Ilustro aos pacientes diabéticos que me procuram que o cigarro, no diabético, é duplamente letal. Lentamente, como se fosse um picumã, substâncias nocivas (as mesmas que podem causar um câncer) entram no organismo e vão se depositando nas extremidades distais do corpo, no caso os vasos capilares dos pés e mãos.

Com os anos há então necrose (fica sem circulação) e quando chega nessa fase, tem que ser amputado, o dedo ou o pé, até mesmo toda a perna. Tudo isso pode ser evitado. Não fumem.

Em 1988 eu era um despreocupado e feliz estudante de Medicina na PUC. Foi lá que encontrei três futuros colegas e amigos daqui desta cidade. Antes mesmo de conhecer São Gabriel eu tive a satisfação de ter como residente da equipe o doutor Nilson, em outra equipe a preceptora era a doutora Sandra Webber e o residente do Neuro era o doutor Pedro Cougo.

Sem jamais saber que um dia os encontraria na mesma cidade, ia me esforçando. Na equipe de Clinica o residente era o segundo na hierarquia, ele mesmo não tendo responsabilidade nenhuma sobre os estudantes, era constantemente solicitado por nós.

Afinal, procurávamos o apoio de alguém mais graduado, para no final da manhã não passarmos pelo constrangimento de não saber algum detalhe do paciente que cada um era responsável no andar das enfermarias.  Já que tínhamos de saber tudo, ou quase tudo ao nosso alcance, ao relatar o histórico para o preceptor e chefe da equipe.

Uma bela manhã de chuva, quase no inicio da reunião, o residente chegou, sim era o doutor Nilson, indignado com o que trazia na mão: era um esfignomanômetro, instrumento para aferira pressão arterial: “Um de vocês esqueceu inflado no braço de uma paciente”. Silêncio total, éramos uns 10, um colega olhou para o outro, e eu sabia que não era eu, pois o meu aparelho de medir pressão estava na minha frente. 

Finalmente um colega que vivia no mundo da lua se acusou, tão no mundo da lua que acabou não se formando. Para completar, a paciente era um caso gravíssimo de enfisema. Pouca oxigenação fazia com que a pobrezinha delirasse continuamente. Quando estava melhor relatava a saudade da sua vida do campo onde vivera, e pedia um cigarro. Sua voz era sibilina e arquejante, muitas vezes parecia ser um piano faltando às teclas. Não saia o som.

A situação se deteriorara cada vez mais, ela ficava cada vez mais debilitada. O seu leito era ao lado de uma janela e o serviço de manutenção do hospital fora chamado. Ela tentara abrir a janela para pular (era o sexto andar). A abertura da janela foi selada então com um lacre.

Dona Niobes, esse era o nome dela, ficava cada vez mais fraca, mesmo assim persistia com vontade de dar uma tragada, tal era a força do vício. E dizia ser um vagalume que tinha de sair janela afora para tomar ar. Nem em seu delírio deixava de fazer uma fantasia com um cigarro aceso. Já concluíamos nós, que iniciávamos a cadeira de Psiquiatria e seus diagnósticos por associação.

Numa manhã de segunda-feira chegamos para cada um ver seus pacientes, e a dona Niobes não estava mais em seu leito, tinha ido para o andar de cima, ser um vagalume. (Artigo escrito pelo doutor Gerson Barreto de Oliveira, médico nefrologista da Santa Casa de São Gabriel, publicado no jornal "O Fato", da amiga Ana Rita Chiappetta Focaccia)

Doutor Gerson Barreto de Oliveira.

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