Sezefredo, o que jogou mais que "Pelé"
Por que esta cara? Não acreditam? Sim, Sezefredo, no
falar e apreciar de muitos, jogou mais que o Edson. Outros, um tanto contidos,
que viram os dois dentro das quatro linhas, palpitam que se igualavam no trato
com o esférico.
Terceiros, acham que não dá para comparar. As épocas eram
diferentes, o futebol, outro, os estilos diversos, as exigências aos atletas
nem de longe se pareciam, não existia TV, a mídia esportiva engatinhava etc e
tal. E o profissionalismo ainda não adentrara por inteiro na profissão de
correr atrás da redonda. Um quarto contingente, o maior de todos e, portanto,
hegemônico, está ouvindo falar aqui pela primeira vez da existência de
Sezefredo, gênio do rude esporte bretão.
Claro que o Edson dirá que ninguém nunca jogou tanto
quanto o Pelé. É o que ele diz sempre e seguirá dizendo. Mas quem viu
Sezefredo, lado a lado ou das arquibancadas, desmanchou-se em elogios.
Querem
um exemplo? Então, vamos chamar Osvaldo Brandão. Não sabem quem é? Gaúcho – mas
esta é sua menor virtude –, o meia-direita viu de perto o futebol de Sezefredo.
Brandão vestiu as camisetas do Inter e do Palmeiras, dirigiu oito equipes de
ponta do futebol brasileiro e sul-americano e, por três vezes, a seleção
canarinho. Fala, Brandão:
- Jogava o fino do jogo, sabia passar, fintar, arrematar
(com os dois pés) e cabecear. Foi pena que tivesse uma carreira tão curta,
acabando da maneira como acabou. Mas não há dúvida que foi um dos maiores do
Brasil.
Foi o que Brandão declarou ao Mundo Esportivo, no remoto
ano de 1955. Arrebatado, o editor do jornal sapecou a manchete em oito colunas,
de ponta a ponta da página, onde informava que Sezefredo “acabou cedo mas foi o
maior do Brasil”.
No testemunho do publicitário Ronoel Castro da Silva, seu
pai, Adão Castro da Silva, ex-jogador do Pelotas e da seleção gaúcha de 1947,
afirmava que Sezefredo fora o melhor jogador que vira atuar. Solferino Enderle,
que jogou pelo Grêmio Esportivo Brasil nos anos 1940, tinha Sezefredo em melhor
conta do que o famoso craque de fama mundial. Mas tem mais.
O cronista Mário Filho, que daria nome ao estádio do
Maracanã, também lhe rasgou elogios. Aliás, Sezefredo defendeu o Fluminense,
clube do coração do irmão do cronista, o dramaturgo Nélson Rodrigues. Sobre
nosso personagem, Mário Filho declarou que “era difícil encontrar um
centroavante com tantos recursos, com tanta inteligência”. Achava que “tinha
tudo para ser um rei da posição, não fossem os problemas físicos e de saúde”.
Aqui, aparecem os problemas de saúde de Sezefredo. Vamos
deixa-los para o final. Antes, mais duas opiniões. Primeiro a do uruguaio Luis
Ernesto Castro. Ele refulgiu na lendária linha de frente do Nacional, de
Montevidéu, formada pelo quinteto Castro, Garcia, Ciocca, Porta e Zapirain.
Era
a virada dos anos 30 para os 40, quando Sezefredo, em fim de carreira, também
passara por lá. Castro afirmou ter tido “a sorte” de ver Sezefredo jogar. “Se
esse homem tivesse vindo dez anos antes de quando veio, velho e doente, teria
sido um professor de futebol, dando aulas”.
E apareceu a doença de novo. Voltaremos a ela no fim, como convém, que é
quando tudo acaba mesmo.
O segundo pitaco é o do torcedor. Xavante de quatro costados, José Lanzetta viu
Sezefredo jogando e fazendo jogar. Era o
tempo em que o craque defendeu as cores do Regimento, clube do bairro
Fragata. Quando Sócrates surgiu na
década de 1970, Lanzetta comentou que era o perfil de jogador mais próximo a
Sezefredo que jamais vira.
Sezefredo Ernesto da Costa nasceu no interior de Santa
Vitória do Palmar em 7 de novembro de 1912. Foi para a cidade estudar e
perseguir bolas de pano nas ruas. Mais taludo, foi chamado pelos clubes da
terra, o Santa Cruz e o Brasil.
Na idade
de prestar serviço militar foi para Pelotas. Lá descobriu um conterrâneo e
amigo, Nestor Corbiniano de Andrade, que também gostava do esporte. Foi ele quem o levou para o Regimento, o
verde amarelo pelotense – mais tarde, mudaria de nome para Grêmio Atlético
Farroupilha. E acrescentaria mais uma cor, a vermelha, ao fardamento.
O ano
mais glorioso do Farroupilha/Regimento foi 1935 e teve Sezefredo como estrela.
Passou por cima de todos os adversários e chegou a Porto Alegre para disputar
as finais do Estadual. Topou com o Grêmio em uma série de "melhor de
três".
No primeiro
jogo deu Grêmio, 3X1. No segundo, em Pelotas, a desforra, com um incontestável
3X0. Na decisão, disputada novamente na capital, Sezefredo balançou as redes no
primeiro minuto. Russinho empatou aos
37, mas Cerrito fez o gol da conquista aos 63.
No retorno
a bordo do navio Itassucê, uma multidão invadiu o porto de Pelotas para esperar
os campeões. Foi o primeiro grande troféu de Sezefredo.
No ano
seguinte, participou de nova façanha: o primeiro triunfo dos gaúchos sobre os
paulistas na história do campeonato brasileiro de seleções. Após empate em 1x1
no tempo normal, a vitória veio com gol dele na prorrogação. Seu toque,
iludindo o goleiro Jurandir, foi cantado em prosa e verso. Os versos ficaram
por conta de um torcedor, Carlos Alberto Zubarán, extasiado com a cena:
Na figueira legionária
Onde fácil é subir
Cardeal ensaiou uma ária
Para encantar Jurandir
Jurandir foi para um canto
A bola foi para o outro lado
Cardeal talvez por encanto
Deixou o goleiro sentado
Do Fragata e sem escalas, foi diretamente para a Seleção
Brasileira, convocado pelo técnico Ademar Pimenta. Disputou o Sul-Americano de
1937, comandando o ataque do selecionado. Foi vice-campeão. Assediado por
vários clubes, assinou com o Nacional, do Uruguai. Em 1938, teve o passe
adquirido pelo Fluminense.
“O novo comandante da ofensiva tricolor apresentou-se em
excelentes condições físicas", atestou em 13 de abril daquele ano o jornal
Correio Paulistano.
Seu destino estava traçado: a Copa do Mundo de 1938, na
França. Convocado pela Confederação Brasileira de Desportos (CBD), foi barrado
pelos médicos. Estava doente. Carregava uma tuberculose.
Era um boêmio inveterado. Gostava de jogatina. Varava as
noites diante do pano verde. Talvez isso
tenha sido a causa maior para adquirir o mal do século, que o levaria à morte.
Como se não bastasse, também padeceu das consequências de um joelho arrebentado
pela fome das chuteiras rivais.
Mas Sezefredo Ernesto da Costa, o Cardeal, ainda assim
jogava. O apelido veio com o visual: a boina vermelha ou a rede de cabeça da
mesma cor, que costumava usar em campo.
Retornou ao Farroupilha em 1940, onde participou de mais
três temporadas. Dizem os antigos que, para iludir a marcação da tísica, atuava
parado, nas imediações da meia lua da área inimiga. Ali, aguardava uma bola
espirrada da defesa ou o passe do meia. E quando a bola chegava aos seus pés,
nem a doença, nem os adversários conseguiam tirá-la. Por um instante, era o
Cardeal de sempre. E o goleiro logo seria oficialmente informado sobre esta
verdade.
Foi assim até 1943, quando o Farroupilha conquistou mais
um campeonato citadino. Depois, a bola foi se distanciando e a tuberculose se
acercou ainda mais.
Seu estado já era terminal quando o Nacional veio
buscá-lo. Levou-o para Montevidéu, bancou-lhe a assistência, pagou suas
despesas. A capital uruguaia, então, era
um centro avançado de combate à doença no continente. Mas de pouco adiantou. O
mal já se incrustara nos pulmões. Era tarde demais.
Morreu em 4 de agosto de
1949. Tinha 37 anos. Hoje é nome de ginásio de esportes na sua cidade.
Nunca saberemos se foi melhor, igual ou inferior a Pelé.
Pela soma de gols, triunfos, títulos e troféus, não há duvida que ninguém ombreia com o campeão de três copas mundiais.
Neste ou no século passado.
Mas para o futebol, esporte associativo, é sempre
problemático dizer que a vitória é apenas daquele jogador. Ou que o fracasso
também é responsabilidade de um só indivíduo. Quem viu os dois não está mais
aqui para depor. Nem mesmo Pelé poderia julgar com conhecimento de causa.
Quando Cardeal encerrou sua carreira, o filho de Dondinho e Celeste tinha três
anos e ainda balbuciava em Três Corações.
Sezefredo se foi mas ficou a lenda Cardeal. Nela,
afirma-se que possuía apenas um dos pulmões. O que daria um conteúdo de
dramaticidade e de extraordinária bravura à trajetória do guri que corria atrás
de bolas de pano no Sul do Sul do Brasil.
Afinal, como o cinema nos ensinou –
obrigado, John Ford – quando a lenda se torna realidade, publica-se a lenda. E
as lendas, todos sabemos, são melhores. Cardeal não foge à regra. E aí está sua
lenda, plena de verdades. (Por Nilo Dias)
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